Ao se arriscar em mostrar o quanto estavam nus ao público, The Bombers traz um dos melhores discos de 2022 e retrata as passagens do tempo recente e a luta para se manter de pé, vivo e com o que resta de nossos corações.
Ao longo dos mais de 20 anos de história do The Bombers, banda com origem no litoral paulista, as músicas em inglês sempre fizeram parte da trajetória do grupo que se destacou por misturar o hardcore, punk e ska em suas composições. Matheus Krempel, guitarrista, vocal e fundador do Bombers, sempre esteve atento os lançamentos musicais, sendo um apaixonado por diferentes bandas internacionais que expressavam a verve rock and roll no estilo de Wildhearts, Guns N’ Roses, Rolling Stones, passando por Ramones, Rancid, Backyard Babies e muitas outras.
Inspirado pelo estilo, a banda buscou seguir alguns dos passos ensinados pelo rock, mantendo uma postura de se entregar no palco até as últimas consequências, criando uma aura de catarse que conseguiu atrair e manter um público tão interessado nas canções quanto nos shows do grupo. No entanto, a sensação de que pouco eram compreendidos e a necessidade de se comunicar um pouco mais de perto foi uma daquelas bolas de neve que culminou anos depois em músicas escritas em português ou em versões de outras canções nacionais. Pouco a pouco nascia a vontade e talvez a necessidade de criar de vez um vínculo definitivo: um álbum totalmente em português.
Claro que estamos resumindo a história que compreende de 1995 até 2022, diversos lançamentos de álbuns e EPs. Nesse período, foram incontáveis os problemas pessoais, mudanças de formação, shows incríveis e outros que talvez prefiram nem lembrar, além de viagens, amizades, decepções e frustrações. Mais do que um casamento, a banda foi mais parecida com um navio que passou por muitas tempestades, riscos de naufrágio e que enfrentou um oceano de dificuldades. Mas como o ditado diz, “mar calmo nunca fez bom marinheiro”, o grupo, formado por Gustavo Trivela, Raul Signorini e Estefan Ferreira junto com o Matheus, não ancorou ou preferiu atracar o navio em um cais seguro.
O lançamento do álbum “Alma em Desmanche”, no mês de outubro, traz um Bombers totalmente consciente do seu passado e presente e que buscou ficar totalmente nu aos ouvidos do público, mostrando canções em português muito claras sobre o seu significado. Canções que podem ser até interpretadas de formas diferentes, mas que compartilham o amadurecimento de pessoas que, assim como boa parte de nós, vem lutando há bastante tempo por uma única coisa: sobreviver diante da doença, da pobreza e do desamor, mas que não consegue parar de acreditar em dias melhores.
O disco, que até a publicação dessa resenha não tinha data para ser disponibilizado nas plataformas digitais, está disponível para compra diretamente nos shows. A estratégia é exatamente essa, fazer com que o público entenda de que não se trata de mais um lançamento e sim de um símbolo de que estamos partilhando o mesmo momento, vivendo os mesmos problemas e resistindo a todo tipo de percalço, não perdendo o poder do olho no olho, do beijo ou do abraço.

É o que já mostra a faixa “A Morte”, que apesar do título é uma canção que traz um significado igual a carta do tarot. Na carta, seu simbolismo está ligado ao renascimento, revelando uma transformação e mudança. Ou, dependendo, revelar que é necessário deixar o passado para trás para que possa seguir em frente com o futuro. O riff da guitarra e a voz um pouco mais rasgada no refrão dão um tom de urgência a música.
Em “Deixa Ser”, que mantém o clima mais pra cima do álbum mesmo com uma letra que fala sobre solidão e abandono, a banda consegue falar sobre separação e decepções nos relacionamentos sem cair em clichês fáceis, abusando de metáforas e sendo um possível hit aos corações partidos.
“Ardendo em Chamas”, que até ganhou clipe dois anos antes do lançamento do álbum cheio, é mais uma daquelas canções para deixar o público pulando junto ao riff, baixo e bateria que se mantém em alto e bom som. Ficar de pé e continuar caminhando é a melhor forma de não ser um alvo fácil por aí, sem perder aquilo que traz a chama de nossos sonhos e objetivos.
Na quarta música desse trabalho mais uma referência as cartas do tarot. “O Louco”, que no tarot significa novos começos e oportunidades, deixando a entender o quanto devemos valorizar o momento e mesmo que não represente uma promessa de sucesso, ficar parado só irá nos impedir de alcançar nosso potencial. A música, intitulada com o nome da carta, possui um dos refrães mais bonitos do rock nacional no ano de 2022.
“Mudamento” é um ska divertido sobre o cancelamento, até um pouco mais do que isso. Afinal, somos julgados em todo o tempo por nossas falas e atitudes e em 100% das vezes não conseguimos agradar todo mundo. A canção é um ótimo jeito de refletir sobre os dedos que nos apontam, mas também sobre os dedos que apontamos. Ser o que somos sem disfarces ainda é melhor jeito de não enlouquecer.
Na faixa que dá título ao álbum não é exatamente uma música. Na verdade, “Alma em Desmanche” é uma mensagem curta, porém intensa e que talvez seja melhor deixar sem informações por aqui. Entre sons de tempestades, distorções e estática, Matheus declama seu puro ódio sobre o status quo.
Em “A Roda”, faixa interessante e que se complementa de certa forma com a música anterior, e que traz um pouco de “Violência” do Titãs, o Bombers conta o que parece ser a história do mundo. Independente do que seja feito por mim ou por você, “nada impede a roda de girar”.
A partir desse ponto o disco parte para uma balada bastante radiofônica. “O Fantasma” é uma daquelas canções que poderiam fazer parte de um documentário do Eduardo Coutinho, cineasta que privilegiava em seus filmes a história de pessoas comuns. O próprio clipe possui um pouco dessa característica, como se os atores que aparecem no vídeo tivessem mais coisas a nos dizer do que realmente eram capazes de fazer.
Outra balada do disco de nome “O Abismo” pode não ser uma referência a obra de Friedrich Nietzsche, mas gosto de pensar que possui sim menção a obra do filosofo alemão. No livro “Além do Bem e do Mal”, em trecho bastante popularizado, Nietzsche cita exatamente essa parte de um abismo: “quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você”. No entanto, na mesma obra, o filosofo também traz uma parte que diz: “o que se faz por amor sempre acontece além do bem e do mal”. Mesmo longe de compreender a totalidade de sua obra e muito menos querer parecer um intelectual tentando citar filósofos mortos há mais de um século em resenhas de bandas de rock, não há como não reconhecer o impacto ao menos de suas frases e como isso reverbera até hoje, pois conseguimos trazer seus significados para realidades atuais.
Voltando ao clima mais agitado, “Não Vencer não é perder” é uma daquelas canções que deveria ser parte de um estudo de qualquer boa universidade do país. Mais do que ser ou parecer uma música de autoajuda, esse é quase um tratado do que a vida não deveria significar para a maioria das pessoas, sendo contrária ao pensamento daqueles que acreditam que ser alguém de sucesso é sinônimo de riqueza, fama ou de conquista de determinados pódios da sociedade. A música pode até lembrar, bem remotamente, a música o “Vencedor” dos Los Hermanos, mas repito, bem remotamente.
Partindo para as últimas canções do álbum que já estava repleto de boas músicas, o Bombers traz uma canção de amor que lembra bastante as baladas dos Beatles e um pouco da Jovem Guarda. A canção “A Culpa” ressignifica o sentimento de cuidado e proteção com o outro nos dias de dificuldade. Talvez no estilo de uma frase popular: “me ame quando eu menos merecer, pois é quando mais preciso de você”, mas sendo o protagonista da música declarando que é capaz de amar o outro quando esse outro menos merecer. Destaque para o baixo que dá um tom bastante especial a faixa.
Na penúltima música do álbum, “Como Ser Feliz” não traz respostas, mas questiona a ideia de quem age diante da vida dentro de padrões ou se buscando se encaixar em formatos apenas para ser aceito dentro um grupo ou sociedade, fingindo ser o que não é ou sendo apenas uma metade do que poderia ser. Por quanto tempo é possível viver assim, ou melhor, como se permitir viver acreditando que não devemos nos arriscar já que viver já é um próprio risco? Fique com essa pergunta para responder.
Fechando o álbum com o total de 13 faixas, Bombers convidou a artista Letty para colaborar na música “Lua Vazia” e encerrar o disco com uma pequena ode à preguiça. O título e refrão da música possui relação com a astrologia, mas confesso que entendi pouco o significado para poder explicar corretamente, mas do pouco que compreendi não é recomendado iniciar projetos quando a lua está “vazia”, por exemplo. Ou seja, melhor ficar quietinho mesmo.
O Bombers conseguiu trazer à tona um disco capaz de se comunicar de forma mais direta, intensa e até intelectualmente com o público, mas é necessário embarcar nesse navio que espero ainda tenha muitos lugares a nos levar. Posso dizer que é o melhor disco de 2022, mas isso cairia naqueles velhos clichês de sites no final do ano que insistem em colocar a música em determinadas competições invisíveis, mas ao mesmo tempo cruéis.
Não é o melhor disco do ano, é um daqueles discos que vale a pena manter por perto em todos os anos a partir de sua existência.
Atualização (18/10/2023): O disco foi lançado em todas as plataformas digitais exatamente um ano depois do seu lançamento, em outubro de 2023.