Por Bruna Vilela, jornalista, guitarrista e backing vocal da banda Miêta
Toda aquela sujeira escondida, mais uma vez, é colocada em cima do tapete pela Pata.
A banda mineira que lançou recentemente o seu disco de estreia “Shit and Blood”, através de um projeto de financiamento no Catarse denominado “Patolão”, já passou pelo Nada Pop aqui e aqui, fazendo o já tradicional barulho sonoro e visual, respectivamente, com o próprio debut e o primeiro single/clipe, “Downer”.
Agora, depois de já ter rodado um bocado pelos ouvidos do público com a produção potente do trabalho de estreia, a banda lança seu segundo single acompanhado de registro audiovisual, coroando a única faixa em português do álbum, “Selvagem e Cabeluda”.
Como parceira de alguns palcos e correrias da vida, eu pude acompanhar bastante a trajetória do grupo e, ainda assim, quando fui convidada para escrever sobre esse lançamento, me percebi escalando alguns pontos que antes eu pensava já estarem solidificados na minha cabeça assim como a música em questão, que eu canto em todo cômodo da casa enquanto estruturo esse texto.
Agora vamos à merda sangrenta:
“Selvagem e Cabeluda”, ao mesmo tempo em que faz menção ao primeiro EP do grupo (“Wild and Cabeluda”) e retoma algumas das ideias que pautaram o início da banda, explica o conceito do primeiro álbum inteiro, o “Shit and Blood”. E esse é o primeiro motivo pelo qual a faixa chama atenção. A escolha da Lúcia Vulcano, compositora, em construir a letra em português e mantê-la em um trabalho com 9 outros fonogramas em inglês nos faz todo sentido nesse ponto.
A língua é acessível e, mais do que isso, a linguagem é o mais acessível possível, já que não tem para onde correr: “tem sangue saindo da minha buceta/ mamãe disse que agora eu sou mocinha/ mas que merda, até ontem eu era criança/ eu não quero por essa fraldinha escrota”.
Está tudo ali. E, se o ruído (noize, barulho, dissonância, distorção) se faz presente em toda a narrativa sonora da faixa, na narrativa lírica, a enunciação se faz o menos ruidosa possível, sem rodeios. A mensagem chega em todo mundo. Se vai ser recebida de forma afável ou não, já é outra questão.
E é aí em que encontramos um dos pontos mais interessantes e atrativos, senão o mais, da Pata: o desejo – e a eficiência em consolidá-lo – de trazer tudo aquilo que é dito como sujo – como não digno de diálogo ou visibilidade, como digno de esconderijo – para a superfície. Não precisa ser afável, porque, no geral, todas as questões inevitavelmente humanas não são. Mas é imprescindível ser registrado, encontrar lugar de enunciação. É imprescindível falar sobre. E, como o grupo sempre mostra, dá pra rir sobre também. E é justamente por isso que tudo fica mais leve – mais selvagem ou mais livre, pra quem preferir. Por isso, tudo é direto, sujo e, para alguns, incômodo: porque o que é nosso tem de ser dito como nosso e não deveria existir problema nisso.
A banda encontra esse lugar da tragicomicidade pra falar de temas explicitamente universais. A gente consegue perceber isso, de outras formas, ao longo do disco, ou até mesmo no single anterior “Downer”, em que a banda bota pra jogo toda a frustração e mágoa com a vida, deixando uma certa “felicidade compulsória” pra escanteio. É aquele ditado né: “I hate every single day I’ve lived so far!” – o grito no início da música.
Mas, se em “Downer” a temática alcançava todo sujeito puto com o mundo querendo gritar a angústia num megafone na cara de todo coach positive vibes e timeline de instagram patrocinado, “Selvagem e Cabeluda” diz respeito diretamente ao subjetivo feminino, que pauta toda a trajetória da banda e, consequentemente, a maior parte de “Shit and Blood”. Ouvindo a música, pensei o quanto seria bom e acolhedor se eu tivesse escutado a faixa no início da minha puberdade.
Todas as mulheres cis do mundo, do Brasil à Sibéria, já cagaram menstruadas. E, pelo menos em nossa realidade patriarcal ocidental e branca, tiveram que enfrentar os entraves, as confusões, ilogismos e as angústias de “se tornar mulher”, tendo que passar pelos assédios, invasões e exigências estéticas e comportamentais que esse processo supõe.
Dessa forma, a banda escolhe falar sobre isso. Porque nos diz respeito.
E aí propõe a(s) pergunta(s):
é sujo? É nojento?
Ou é nojento porque é íntimo? Ou é sujo porque é humano? Ou é sujo e nojento porque é de mulher? E aquilo que é da humanidade, da subjetividade e do íntimo feminino a gente não pode sair falando por aí?
No videoclipe feito para a faixa, a Pata contou com a Tesoraria, produtora audiovisual de Belo Horizonte formada por mulheres lésbicas, com foco na comunidade feminista e LGBT+, para ilustrar e tensionar essas questões justamente com cenas intencionalmente nojentas, mas, ainda, e, na verdade acima de tudo, com o rastro de sangue cômico – de “loser”, como a própria banda se intitula.
As meninas da Tesoraria ficaram a cargo das imagens, produção, direção e edição do vídeo. O roteiro ficou por conta da Lúcia Vulcano, vocalista do grupo. E é com merda e sangue pra todo lado, cigarro exalando no banheiro, sutiã na privada, a banda inteira dançando dentro de um box e a representação desse sujeito feminino através da atriz Janaína Tábula que o registro audiovisual ironizou aquilo que a percepção social dita como nojento, transformando o cenário todo em algo verdadeiramente sujo.
Como quem diz: não importa se você acha que essa feminilidade não é bonita, se você acha essa feminilidade frágil, vulnerável, bagunçada, suja, nojenta, vulgar e inefável. Às vezes, ela é até dolorosa. E ela não precisa ser bonita. Mas ela ainda é minha. E é atemporal. Ela me diz respeito. E eu vou falar sobre isso.
A Pata, que enaltece e coloca em exposição aquilo do corpo feminino que é considerado digno de esconderijo até no seu nome (fazendo referência à expressão “pata de camelo”), mais uma vez, traz tudo que fica só ali no nosso absorvente e na nossa cabeça pro espaço visível. Não pros homens, mas pra nós mesmas. Porque se a gente não reconhece que fomos construídas por e vivemos com merda e sangue… aí é melhor nem sair do banheiro, né?
Quando uma sujeira está à mostra e não debaixo do tapete, a gente vê que ela existe. E, então, a gente descobre o que fazer com ela. No caso, é limpar nós mesmas do patriarcado mesmo.
Confira o vídeo:
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