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Continuação…
Agora é hora de irmos para tão esperada bota, ou melhor dizendo, o coturno da Europa! Chegamos à Itália, chegamos ao calor europeu que todo mundo tanto falou. E logo de cara descobrimos que é uma verdade em todos os sentidos, tanto no sentido climático, com um calor infernal, como também em relação ao humano. Como nos disse um italiano logo de cara, a Itália não é Europa! Nós não conhecemos a Itália inteira, mas até onde vimos essa ideia tem muita verdade. Em alguns momentos, sem querer eu quase falava português de tão parecidas que são algumas coisas. Voltou ao meu campo visual construções irregulares, calçadas com cimento remendado, pessoas falando alto e as imperfeições das ruas que estamos acostumados. Muitas coisas me lembraram bastante São Paulo.
Os shows na Itália foram os principais responsáveis pela nossa mobilização para a tour. Desde o Brasil, já criamos laços e o fato de a Paola fazer parte da cena fez com que essa parte da tour fosse muito esperada por todos nós. A Primeira parada foi em Bolonha, na casa da Martina, num prédio que mora uma grande quantidade de punks! Não é um squat, é um prédio comum residencial que os punks acabaram morando lá. Na casa da Martina não se bebe água (só cerveja e cachaça), no entanto, ela abriu uma exceção para a gente por termos vindo de longe! E o diálogo que nos mostrou essa “regra” foi o primeiro que tivemos nesse país. Foi o tom do que estaria por vir!
O apartamento é bastante movimentado, ficar sentado na sala em pouco tempo já me deu a impressão que estava na “Praça é Nossa”, pois enquanto estava ali vários personagens iam passando, trocando ideia, saindo. Numa dessas entradas fomos convidados a colar numa ocupação ali perto na qual havia uma piscina. Levantamos do banco da “praça” e colamos para rua verificar, e num rolê rápido chegamos à ocupação XM24. O lugar era impressionante! Tratava-se de um galpão ocupado enorme que já existia há 17 anos e devido à escalada da extrema-direita no poder do país estava prestes a ser desocupado. A primeira impressão foi mediada por um grafite gigantesco com os símbolos antifascistas e um desenho que remetia a personagens históricos da resistência e um escrito enorme dizendo ANTIFA.
Chegando ao pico a galera que estava no local viu que éramos brasileiros e de cara deu um play no Ratos de Porão, e um mano de Guiné que estava lá e já tinha morado no Brasil no Bairro de Interlagos botou o funk do “Parado no Bailão”! Em todos os lugares que colamos na Europa, quando falamos que éramos do Brasil, as pessoas mencionavam o nome do Ratos de Porão. E é verdade, também cantavam algum funk e em grande parte das vezes era o do “Parado no Bailão”! É impressionante o respeito que o Ratos tem no underground europeu.
Descrevendo mais o pico, lá tinha um laboratório de rádio livre, tecnologia e informática, estúdio de música, asilo para lutadores/as idosos/as, piscina, acolhimento e aulas de italiano para imigrantes, etc. Infelizmente a campanha feita por todo o país pelas cenas e movimentos antifascistas não foi o suficiente para barrar a reintegração de posse e nossa visita aconteceu uma semana antes da desocupação. Dezessete anos é muita coisa, foi um baque para as pessoas, mas como aprendemos aqui com o Espaço Impróprio, todo final é um recomeço e o que faz movimento são as pessoas e elas vão se manter ali produzindo coisas e levando o legado de todos esses anos.
Arezzo – Itália
Em Bolonha mesmo pegamos mais uma van para andar pela Itália por 10 dias. Dessa vez sem motoristas. A direção ficou ao cargo de nós mesmos. Um motorista com a carta caçada do Brasil e a outra com a carta da Itália vencida. Saímos de Bolonha no mesmo dia e pegamos a estrada pra tocar no Rotten River Camp. Esse festival acontece há um tempo e em dois dias com um acampamento enorme em uma área perto de um rio seco. Esse ano faltando um dia a polícia não deu o alvará de autorização e proibiu o uso do espaço; às pressas a organização através da solidariedade entrou em contato com o pessoal da ocupação gerida pelo coletivo Agripunk e o festival mudou de local em cima da hora e aconteceu lá. Nós já íamos tocar no Agripunk no domingo, então por lá ficamos por três dias. Foi inédito dormirmos no mesmo lugar tantos dias assim na tour!
O festival Rotten River é organizado por um coletivo que tem não muito mais que 10 pessoas, na base do “do it yourself” e por isso que fica mais impressionante a estrutura que essas pessoas conseguiram disponibilizar. Os palcos enormes, aparelhagens ótimas, a galera tinha um caminhão, empilhadeiras. E nada disso foi alugado, tudo foi feito na base do empréstimo e do apoio mútuo. O festival contava com umas dez bandas por dia e é uma realidade muito diferente com a qual estamos acostumados, pois todo mundo convive por dois dias acampados motivados por um festival underground. Foi nosso primeiro show na tour em um palco maior. Tocamos à luz do dia e isso também foi outra novidade. Vimos bandas que gostamos muito e nunca imaginamos ver ao vivo como o Klasse Kriminale, Azione Diretta, Bull Brigade, Nabat, Urban Vietcongs, etc. Conhecemos bastante gente por lá, trombamos outros velhos conhecidos do Brasil como o Iacopo, foi um evento muito louco!
Finalizado o festival a estrutura do Rotten River foi desmontada e virou outro rolê do nada, parecia outro lugar! De um festival enorme passamos para um evento menor no espaço de convivência dentro da ocupação. Foi nesse momento que deu tempo para conhecer o que é o coletivo Agripunk e as pessoas que cuidam da ocupação. O lugar é uma espécie de fazenda com vários animais, é um cenário totalmente rural. Conhecemos a Desiree que é uma das pessoas do coletivo e ela é uma das pessoas mais legais que conhecemos em todos os lugares que tocamos! Ela nos mostrou o lugar e nos contou a história.
Essa fazenda era um matadouro de perus. O pessoal do coletivo descobriu varias irregularidades sanitárias e administrativas as quais foram comprovadas perante a justiça. Durante esse processo o lugar foi ocupado e até hoje se trata de uma ocupação gerida por militantes da libertação animal e de defesa do meio ambiente.
A recepção mais uma vez foi muito calorosa. Nesse dia tocamos com mais uma banda das que ficaram nas nossas memórias de apresentação impressionante. O Call The Cops que veio direto de Bolonha. Eles têm o mesmo lema da casa da Martina, é estritamente proibido beber água durante a apresentação! Visual carregado e som extremamente violento e agressivo! As guitarras da banda literalmente cortam a quem tá assistindo, cada som é um tiro. Esperamos bem em breve que eles venham para o Brasil, se eles tiverem lendo no Google Translate fica aqui a nossa cobrança! No dia rolou também as Balls of Firenze e Minus Hero. A Itália é vida louca e o mais louco ainda estava por vir. De Arezzo partimos mais para o sul que é onde todo mundo nos dizia que lá “o chicote estrala”!
Napoli – Itália
Se ao entrar na Itália já era possível ver vários paralelos com São Paulo, quando chegamos ao sul da Itália especificamente em Napoli, deu pra entender bastante da influência na nossa cultura! Napoli é uma cidade que é doidera pura. As pessoas no geral não seguem regras! No trânsito ninguém segue sinalização – a galera anda na contramão, você vê criança dirigindo moto, motos com cinco pessoas em cima sem capacete. Diferente da maioria dos lugares que passamos, lá já tinha que ficar ligeiro com trambiqueiro de rua e assalto. Fazendo um paralelo, Napoli é tipo a Ladeira Porto Geral da Europa! Por isso a identificação com o lugar. No lugar que estávamos as pessoas ficam bastante na rua, as pessoas conversam aleatoriamente com desconhecidos como aqui no Brasil. Lá, Maradona é Deus (foi ídolo do Napoli), a cidade é muito musical e agitada. Têm vários becos, cortiços, botecos e quebradinhas em geral. O caos de Napoli chega a ser poético! O sul da Itália definitivamente é a periferia da Europa, tem muita semelhança com a América Latina. Caos, barulho, subversão de um lado. Religião, máfia e desigualdade de outro.
Nossa estadia por Napoli foi dentro de Universidade ocupada! Pense em algo similar à PUC de São Paulo (ou alguma universidade federal para quem é de outra cidade) ocupada por grupos anarquistas e comunistas gerindo um espaço enorme! Tem academia de boxe, uma cozinha industrial enorme, estúdio de música, laboratório de internet! Atividades muito parecidas com a Xm24. As ocupações da Itália são muito grandes, organizadas e tem muita durabilidade por algum motivo que não sei explicar – se são as leis, a correlação de forças da esquerda ou alguma outra coisa. Não deu pra entender muito bem essa parte.
O Boxe Autônomo (coletivo brasileiro de boxe popular) estava lá e deu um treino e fez uma conversa com a galera. Após o treino montamos os equipamentos no pátio da universidade batemos um rango feito de forma coletiva na bandejão ocupado e depois tocamos para a galera. Esse show foi muito legal por que pega nosso gosto de tocar em espaços públicos, ocupações, movimentos políticos, etc. O que chamou a atenção é que nesse som apareceram várias pessoas que não faziam parte da subcultura, era a galera que estava passando na rua, ou indo para a aula na parte não ocupada da universidade e entrou para ouvir o som. Pessoalmente, foi uma experiência bem foda, pra quem trabalha em uma Universidade como eu, em que cada vez mais tem um ambiente mórbido e vigiado, ver a autogestão deixando lugar vivo é um respiro e uma inspiração. No geral, Napoli é uma cidade surreal, quente, barulhenta e subversiva! Me senti em casa de verdade, ainda mais com a recepção do Dario, da banda The Radsters, que recebeu a gente com cervejas geladas, coisa que para a gente é comum, mas pela Europa não é tão fácil de encontrar!
De Napoli partimos para a região litorânea de Torre d’Annunziata com sua areia negra e vigiada pelo vulcão Vesúvio! O que tem de digno de nota é que boa parte das praias são particulares e muitas delas funcionam em horário comercial! Chega às 18 horas a praia fecha e você tem que ir embora. E foi nessa cidade que batemos a van no trânsito caótico e tivemos mais um prejuizinho de leve para adicionar nas nossas contas. A parte boa é que, de tão maluco o trânsito, os motoristas devem estar tão acostumados em bater o carro que não houve muitas burocracias com o caminhoneiro que pilotava o caminhão, ai qual entramos na traseira. Com a van batida, pegamos a estrada sem carteira e partimos para o próximo som.
Continua…