Não é fácil falar sobre AmarElo, álbum que marca um retorno do Emicida. Antes do dia 30/10, data do seu lançamento, Emicida já tinha disponibilizado três singles que me deixaram ansiosa demais pelo álbum: “Eminência Parda”, o primeiro deles, foi um estrondo. Com participação de Dona Onete e Jé Santiago, a música é furiosa e veio acompanhada de um videoclipe que escancarava o racismo velado da nossa sociedade. Depois vieram “Amarelo” e “Libre”, músicas igualmente grandiosas. A primeira junta um sample de Belchior, a cantora trans Majur e a maior artista pop da atualidade, Pablo Vittar, pra falar sobre resiliência sem repetir frases fáceis de efeito, e a segunda é um funk em parceria com o duo franco-cubano Ibeyi, que avisa: “Se o gueto acorda, o resto que se foda”.
Com tudo isso, minhas expectativas pro álbum estavam beeeem altas e, quando ele finalmente saiu, eu fui de casa pro trampo ouvindo o disco no trem e a cada música que passava eu ficava mais impaciente porque eu queria um som que expressasse a raiva que eu e tanta gente têm sentido no contexto atual e isso não rolava. O disco era sutil, suave, quase um pop-good vibes que está super na moda.
Ali surgiu um debate interno quanto a minha relação com o disco. Eu não podia negar a grandiosidade dele, mas não consegui gostar logo de início. Então quis deixar AmarElo de lado, talvez daqui uns meses/anos, quem sabe, eu passaria a gostar, mas foi impossível, já que quase todas as pessoas ao meu redor, além de perguntar o que eu tinha achado do disco (sou muito fã do Emicida, é de conhecimento geral rs.), diziam que o disco era incrível. Uma amiga chegou até a dizer que “o Emicida salvou a poesia da chatice”. Pensei “ok, vou dar mais uma chance, eu poderia estar com sono no dia”. Então eu ouvi o disco durante dois dias seguidos e a cada “escutada”, AmarElo, que já era grande, ia ficando maior – e melhor.
Realmente, AmarElo destruiu minhas expectativas, que eu criei com “Eminência…” e com o dia a dia insano que estamos vivendo no Brasil, de que aquele seria o disco mais raivoso do Emicida, mas isso só torna o álbum mais interessante. Enquanto pra todos, atualmente, é mais fácil lembrar do ódio que nos separa, Emicida nos lembra que “tudo o que nós tem é nós” e isso logo na primeira faixa, “Principia”, que junta ciência e religião sem ser polêmico ou desrespeitar alguma das duas.
Falando em ciência, o astro amarelo, Sol, também é parte importante do disco, aparecendo na faixa “A ordem natural das coisas”. O próprio Emicida disse em uma entrevista que o disco seria mais “solar” por conta de sua rotina de pai que vê o dia nascer enquanto cuida de sua bebê. Olha, se essa declaração não te fizer gostar do álbum, eu não sei o que vai. Mentira, sei sim, porque logo depois, Emicida também nos lembra de que “quem tem um amigo, tem tudo” e de que sua grandeza como artista não está só em suas letras, mas na capacidade que ele tem de unir, em uma mesma música, Zeca Pagodinho e Tokyo Ska Paradise Orchestra citado Wilson das Neves, quem Emicida diz ter sido um “Orixá que tivemos a honra de conhecer em vida”.
AmarElo também nos leva a abrir os olhos e enxergar as “Pequenas Alegrias da Vida Adulta”, faixa que conta com a participação do pianista Marcos Valle e que ganhou videoclipe estrelado pelo ator Ailton Graça. O vídeo, segundo Emicida, é um contraponto ao clipe de “Eminência…”: “Em ‘Eminência Parda’, temos um ambiente de hostilidade que estereotipa aquela família preta, enquanto em ‘Pequenas Alegrias…’ temos aquelas pessoas na visão de quem ama e é amado”, diz o rapper.
Porém, nas faixas seguintes, “Paisagem” e “Cananeia, Iguape e Ilha Comprida”, a felicidade e o lado do bom da vida se encontram com momentos não tão bons assim. “Paisagem” repete no refrão que tudo está em paz, mas a gente sabe que não está, pois, dentre vários motivos, “a rede social dá o que nós quer enquanto rouba o que nós precisa, porque nada é sólido, nada”; e “Cananeia…” afirma que o disco são cartas de amor em meio a um mundo em decomposição.
Então começa a parceria com Drik Barbosa, “9nha” e a única reação possível para essa música é um gif de mindblown.
O D2, há anos atrás, escreveu uma música chamada “Vem comigo que eu te levo pro céu”, que parece falar de um relacionamento entre duas pessoas, mas rapidamente a gente percebe se tratar do vício em cocaína – até porque a música termina com o barulho de um nariz cheirando uma carreira. Emicida fez o mesmo em “9nha”, só que com uma sutileza bem maior, pois eu (e todo mundo porque eu vi no Twitter, rs.) só fui saber que se tratava da relação de um adolescente com uma arma quando o próprio Emicida falou isso. Incrível como uma música que parecia ser tão simples sobre a primeira vez de um casal, de repente, se tornou uma obra-prima sobre a fetichização da violência. Eu fico em choque até agora, cê é loco.
Então, antes das três últimas faixas que são os singles lançados antes do álbum, vem a música que comprova a fala da minha amiga sobre o Emicida ter salvo a poesia da chatice. “Ismália”, que tem o mesmo nome de um poema de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), compara o destino da personagem central do poema com as pessoas de pele negra. “Ter pele negra é ser Ismália: quis tocar o céu, mas terminou no chão”. A letra é cheia de referências aos recentes assassinatos de pessoas negras que ganharam os holofotes, mas não surtiram resultado algum na luta por igualdade, deixando, na maioria dos casos, os assassinos do Estado impunes e prontos para mais um massacre racista. Essa é uma das músicas que desde a primeira vez que eu ouvi o disco eu pensei que era foda, não só pela letra, mas por terminar com a rainha do cinema nacional, Fernanda Montenegro, declamando o poema. Sim, Emicida conseguiu esse feito também.
Uma coisa que me chamou a atenção no disco é que ele parece seguir uma ordem: começa com faixas explicitando todo o lado bom e bonito da vida, depois contrapõe com o lado insano, se revolta e termina mostrando que ainda é preciso lutar e seguir, apesar das adversidades, que não podem ser maiores do que o amor. E isso tudo sem ser piegas, clichê ou pop good vibes, mas sendo verdadeiro e genial.
No começo de “Paisagem” ouvimos uma brincadeira entre Emicida e sua filha, que se mata de rir enquanto ele repete que pra trabalhar no RAP é preciso ser mau e, talvez, por eu também esperar que o RAP seja mau, foi difícil entender esse disco como um disco de RAP de 2019, então mesmo com todas essas qualidades, AmarElo ainda desperta sentimentos confusos em mim e eu não sei o quanto eu gosto desse álbum, mas sei que ele não é o meu favorito do Emicida. De qualquer forma, AmarElo, como o sol, é grande e brilhante.