Punk, hardcore e alternativo

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Cannon of Hate marca a história do país com o álbum “Democracia de Plástico”

Nem tão breve contexto histórico (sim, é longo. Quer ler direto a opinião sobre o álbum basta pular essa parte)

Na história do Brasil, o ano de 2022 será marcado pela eleição mais importante do país desde o início das eleições diretas após a Constituição de 1988. O cargo de presidente da república, autoridade máxima de uma república presidencialista, deve ser um democrata, com valores que busquem o melhor para o povo e que dialogue com todas as esferas de poderes do país.

Mas o Brasil consegue mostrar que nem sempre o que deveria ser feito é de fato aquilo que acontece. Desde 2018, após a eleição de Jair Messias Bolsonaro o país se manteve em crise e com a sua democracia em risco. O “bolsonarismo”, como foi batizada a ideologia fascista de muitos brasileiros, e que mantém um fetiche pela intervenção militar e o retorno da ditatura, tornou-se um retrocesso político, social e, principalmente, humano.

Diante disso, a reeleição de Bolsonaro por mais quatro anos causaria um verdadeiro colapso nas estruturas que ainda resguardavam os princípios democráticos mais básicos do país. Não à toa o mundo inteiro virou a sua atenção para o Brasil, com muitos se preparando para um possível embargo ao país em caso de um golpe de Estado perpetrado pelo Bolsonaro no caso de não aceitação do resultado das urnas.

O ex-presidente Lula, e o único candidato com a possibilidade real de vencer Bolsonaro e o seu bolsonarismo, possui uma das maiores trajetórias políticas do planeta. O nordestino, metalúrgico e líder sindical, que esteve presente nas manifestações pelas Diretas Já em 1983, foi eleito presidente pela primeira vez em 2002, na 4ª eleição presidencial do Brasil após a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Lula foi reeleito em 2006, após o sucesso de seu primeiro mandato, fortalecendo a política de bem-estar social e promovendo o combate à fome em todo o país. Em 2010, Dilma Rousseff foi eleita com o apoio de Lula, que apesar de apresentar problemas em seu segundo mandato, conseguiu tirar o Brasil do mapa da fome, além de ampliar a ascensão econômica e educacional de milhares de brasileiros. Algo que, hoje sabemos, causou um verdadeiro incômodo a classe burguesa do país. Dilma foi reeleita em 2014 após vencer em disputa do segundo turno contra Aécio Neves, que além de não aceitar a derrota, questionou o resultado das urnas e implantou dúvidas em parte da população sobre o processo eleitoral.

Para resumir um pouco a história, Dilma sofreu um golpe promovido pela ala política da direita e extrema direita. A cassação do seu mandato começou em 2 de dezembro de 2015, após a aceitação do pedido de impeachment pelo então presidente da Câmara dos Deputados da época, Eduardo Cunha. Esse processo, motivado por supostas pedaladas fiscais, foi encerrado em 31 de agosto de 2016, culminando na cassação do mandato da primeira mulher eleita presidente do Brasil. Dilma aceitou o impeachment e fez um discurso histórico e profético sobre os riscos políticos e sociais que o Brasil iria sofrer a partir daquele momento.

O país rompia de vez com a democracia, com os primeiros ovos do fascismo já preparados para romper a casca. Lula foi preso quase dois anos depois, em 2018, condenado em um processo ilegal e com provas insuficientes dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Antes de se entregar à Polícia Federal, no dia 7 de abril, Lula discursou na frente da sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.

“Eu tenho mais de 70 horas de Jornal Nacional me triturando. Eu tenho mais de 70 capas de revista me atacando. Eu tenho milhares de páginas de jornais e matérias me atacando. Eu tenho mais a Record me atacando. Eu tenho mais a Bandeirantes me atacando, eu tenho a rádio do interior me atacando. E o que eles não se dão conta é que, quanto mais eles me atacam, mais cresce a minha relação com o povo brasileiro”, disse Lula durante o seu último discurso antes da prisão.

Nas eleições de 2018, com o antipetismo sendo alimentado pela mídia e a operação Lava Jato buscando de todas as formas conquistar a opinião pública até mesmo por prisões ilegais, o nome de Jair Messias Bolsonaro cresceu entre a população. Mesmo sendo um político caricato, com pouca capacidade de articulação e representando o ultraconservadorismo, a sua eleição foi concretizada no dia 28 de outubro com 55% dos votos contra os 44% de Fernando Haddad. As cascas dos ovos do fascismo eram rompidas naquele momento.

Após 580 dias preso, Lula foi solto em 8 de novembro de 2019 com a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) considerar a prisão em segunda instância inconstitucional. Posteriormente, Lula conseguiu a recuperação de todos os seus direitos políticos após ser inocentado das acusações. Por decisão majoritária, o STF considerou que o então juiz Sérgio Moro, responsável pela condenação de Lula, agiu com motivação política na condução do processo, sendo parcial e comprometendo o direito de defesa do ex-presidente. Além disso, os casos envolvendo o processo de Lula tramitaram fora da jurisdição correta.

Moro renunciou à magistratura em 2018 após ser convidado por Bolsonaro a assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública, comprovando sua parcialidade e interesses políticos.

No ano seguinte, o site The Intercept Brasil apresentou conversas privadas entre os investigadores do caso da Lava Jato e o ex-juiz. Esses diálogos indicavam uma ação em conjunto entre o Ministério Público e a Justiça para prejudicar Lula. Deltan Dallagnol, um dos procuradores do Ministério Público, foi um dos condenados pelo Tribunal de Contas da União no ressarcimento aos cofres públicos em 2,8 milhões de reais por causa de despesas irregulares da operação Lava-Jato.

No dia 2 de outubro, mais de 120 milhões de votos foram apurados pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Lula obteve 48,43% dos votos contra os 43,20% de Bolsonaro. Mesmo com uma diferença de mais de 6 milhões de votos, a eleição foi levada para o segundo turno. Uma verdadeira batalha foi travada e a cúpula do governo Bolsonaro interveio de todas as formas para vencer, partindo por milhões investidos em publicidade em redes sociais, divulgação de notícias falsas, além de todo tipo de assédio eleitoral com apoio de empresários e políticos.

No dia 30 de outubro, segundo turno das eleições, a Polícia Federal agiu de forma contrária ao determinado pelo TSE e realizou diversas blitz na região do nordeste. Muitas pessoas foram impedidas de votar devido as paralizações no trânsito, ampliando a sensação de tentativa de golpe do Bolsonaro. No entanto, às 19h56, com 98,91% das urnas apuradas, Lula foi considerado eleito após receber 59.563.912 votos (50,83% dos votos válidos), contra 57.675.427 votos (49,17% dos votos válidos) de Bolsonaro.

A foto de Lula carregado pelo povo foi escolhida uma das imagens do ano de 2018 - Foto Francisco Proner
A foto de Lula carregado pelo povo foi escolhida uma das imagens do ano de 2018 – Foto Francisco Proner

O jornalista Xico Sá, em seu twitter, comentou em uma publicação que a eleição de Lula foi um verdadeiro milagre popular diante de um governo que usou a máquina pública a seu favor. Até o momento da publicação desse texto, não se sabe se Bolsonaro tentará algum golpe ou trapaça para impedir a posse de Lula. Apesar de manifestações bolsonaristas antidemocráticas sobre a eleição, Lula já montou uma equipe de transição e diversos líderes de outros países já reconhecem Lula como o novo presidente do Brasil, que terá um mandato pela 3ª vez. O presidente eleito já declarou em mais de uma situação que o seu maior compromisso será o combate à fome. Durante os quatros anos de Bolsonaro no poder, o país voltou ao Mapa da Fome. São 61 milhões de brasileiros que encontraram dificuldade de se alimentar e três em cada dez brasileiros não têm certeza se vão fazer a próxima refeição. Para especialistas, mesmo com a pandemia da Covid-19, a culpa pelo retorno da fome envolve o aumento da desigualdade social e a falta de políticas públicas.

Cannon of Hate e o “Democracia de Plástico”

Com origem em 2013, na região da Baixada Santista (SP), o Cannon of Hate é um grupo formado por ativistas do hardcore. Por exemplo, o vocalista da banda, Sandro Turco, há mais de dez anos promove eventos e shows e contribui em diferentes aspectos com outras bandas da região e de outros lugares do país.

Com um histórico de bons lançamentos e o Turco entre os melhores vocalistas da atualidade, o álbum Democracia de Plástico foi lançado no início de novembro após ser financiado de forma coletiva por fãs e amigos da banda. A “vaquinha” teve início no final de 2021, sendo realizada por meio da plataforma Benfeitoria com uma meta de arrecadação de R$ 3.200,00. A banda até conseguiu ultrapassar o valor inicial, fechando a campanha com mais de 50 apoiadores para o álbum.

Além do Sandro Turco, a banda conta com o Marcos Alves (bateria), Mac Gomes (baixo), Marcio Parducci e André Félis (guitarras). Antes do Democracia de Plástico, a banda já tinha lançado três EPs. O último trabalho era de 2017, o que trouxe uma expectativa muito alta para o primeiro álbum cheio da Cannon.

Durante o período da campanha de financiamento a banda divulgou como single a música que dá título ao álbum. Além da música, a faixa também ganhou um clipe produzido por Marcela Sanches. Já a captação, mixagem e masterização do áudio foi feita por Lucas Souza. No clipe, a banda traz Júlio Cesar Chagas como ator convidado.

Um porco com a faixa de presidente

No lançamento do clipe da faixa “Democracia de Plástico” alguns aspectos são importantes de destacar. Com uma máscara de porco, vestido com terno e gravata e com a faixa presidencial, Turco canta, ou melhor, denuncia uma situação de completo descaso aplicada ao país, elencando diferentes situações como desvios de verbas, obras estacionadas, o impacto da fome, notícias falsas, racismo e, claro, o ataque a uma nação inteira. No clipe, o ambiente escuro e com luzes em alguns momentos que lembram o giroflex de viaturas, trazem uma tensão ao vídeo.

A banda se apresenta como uma resistência, junto com o ator que usa uma máscara que lembra bastante a de filmes apocalípticos. Na época do lançamento do vídeo, a pandemia da Covid-19 ainda estava bastante presente e causando muitas mortes. Nesse sentido, podemos considerar o clipe um importante registro de um dos piores momentos da nossa história nesta década. Desde então, quase 700 mil mortes foram registradas no país até o momento. Para piorar, estudos apontam que 400 mil pessoas poderiam ter sido salvas se a política sanitária do Brasil não tivesse atrapalhado a compra de vacinas e atuado na imunização das pessoas. O governo Bolsonaro vem sendo investigado e acusado de genocídio e muito tem se especulado sobre uma possível prisão por esses e muitos outros possíveis crimes cometidos durante o seu mandato que se encerra neste ano.

A música como retrato do nosso tempo

Além da faixa que dá nome ao álbum e que abre o disco, outras nove músicas fazem parte desse trabalho que foi lançado (ou seria abraçado?) com apoio do selo Desordem Music, que integra os trabalhos da produtora Fusa Booking.

A faixa “Câncer Urbano”, que conta com a participação de Vitor Soares, do All The Postcards, fala sobre a violência. Um retrato do Brasil, que é o 8° país mais violento do mundo e que manteve durante o atual governo uma política de tornar mais fácil o acesso às armas pela população.

Em junho deste ano, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou o 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Mesmo apontando uma queda no número de casos, o Brasil continuava sendo o país com maior número absoluto de homicídios do mundo. Segundo pesquisadores da área de segurança, a falta de políticas públicas federais impede que a redução da criminalidade possa ser maior.

Já na faixa “A Vida é Resistência”, que traz o Danilo Rodrigues, da banda La.Marca, junto aos vocais de Turco, é uma canção que trata de esperança, luta e de resistir diante das dificuldades. É uma letra que se encaixa em diferentes aspectos da vida, desde depressão, desemprego e perdas. Mas no campo político, aproveitando o texto do antropólogo Alex Moraes, intitulado “A esquerda triste e a esperança em combate”, publicado em 16 de outubro de 2018 no site Outras Palavras, cabe destacar o seguinte trecho: “Diante de Bolsonaro, que avança prometendo nada mudar, a pior estratégia é a defesa. Precisamos de uma esquerda capaz de afirmar que a vida pode mais”. É exatamente dessa forma que a faixa pode também significar.

Em seguida, a música “Quem Vai Pagar?” traz as desigualdades e o medo da violência que pode nos atingir em qualquer momento. No trecho que traz a frase “cuidado com a bala perdida que pode te acertar”, a banda simboliza uma triste realidade. Em matéria de 2016, publicada pelo portal da Agência Brasil, o Brasil era o país com o maior número de mortes por balas perdidas entre os países da América Latina e Caribe durante os anos de 2014 e 2015. Os dados eram do relatório do Centro Regional das Nações Unidas para a Paz, Desarmamento e Desenvolvimento na América Latina e Caribe (Unlirec, sigla em inglês), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU).

Há alguns dias, durante a live que o Nada Pop realizou com o Sandro Turco, foi revelado que o nome da faixa “401” é uma referência ao número do hotel de Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos. De acordo com o relatório mundial da organização de direitos humanos Human Rights Watch (HRW), divulgado em janeiro de 2021, apontou diversos desrespeitos de Trump durante a sua gestão, considerado um verdadeiro desastre aos direitos humanos.

Capa do álbum Democracia de Plástico, criada por Felipe Grave.

A organização apontou diversas situações que foram prejudiciais, desde apoio a refugiados, retirada dos filhos imigrantes de seus pais, empoderamento de supremacistas brancos, além de agir para minar o processo democrático e estimular o ódio contra minorias raciais e religiosas”. O relatório ainda afirma que Trump retirou proteções legais para a comunidade LGBT, revogou proteções ambientais e tentou destruir o direito à saúde. O dono do prédio 401 ainda se aproximou de governos tirânicos, vendeu armas para governos envolvidos em crimes de guerra e retirou o EUA de importantes acordos internacionais sobre o clima. Qualquer semelhança com o Bolsonaro não é mera coincidência.

Na música “Se entregar é um erro”, pode-se dizer que é mais uma das faixas que buscam uma certa autoajuda, mas com aquela realidade de quem conhece de perto as dificuldades e que mesmo assim escolhe aguentar. Não é fácil, a vida é realmente difícil, mas devemos desviar daquilo que nos impede de ser. Nesse sentido, cabe lembrar o escritor Paulo Leminski e uma de suas frases: “Isso de ser exatamente o que se é ainda vai nos levar além”.

Entre as melhores faixas do álbum, “Profanos” traz além de um poderoso som uma letra que retrata o fanatismo religioso e o uso de crenças na manipulação de milhares de pessoas. Não bastasse isso, a letra traz questionamento sobre meritocracia e visa a reflexão sobre esse tema. Mas nessas eleições foi mais do que comprovado o uso de espaços religiosos, principalmente por pastores evangélicos, na busca por votos de fiéis e na indicação inadequada e antiética de candidatos, sendo uma cooptação da fé, transgredido os valores da própria religião.

Partindo para “Infavorável”, 8° faixa do álbum, Cannon of Hate opta por questionar os mais de cinco séculos do Brasil, seu sistema desleal e a barbárie de nossa história. Essa música me fez lembrar do álbum Monumentos da Barbárie, lançado pela banda Desacato Civil em 2016. Aproveito para fazer um paralelo dessa faixa com o significado da música “Latinoamerica”, da banda Flicts, do álbum Singelos Confrontos, de 2013. É triste imaginar o quanto o nosso país, assim como outros países, possui uma história de sangue, estupro, ódio, corrupção e fome. “Quantos vão morrer?”.

A penúltima faixa, intitulada “Passou da Hora”, é emblemática por dizer algo que parecer ser óbvio, mas ao mesmo tempo necessário. É importante que a gente entenda em qual classe social estamos e como somos impactados por isso. Tim Maia possui uma frase clássica na qual ele diz que o Brasil é o único país onde pobre é de direita. Claro que esse é um termo que pode gerar todo tipo de debate, com posições a favor e outras contra essa frase. No entanto, perceber que aqueles que foram mais prejudicados por um governo sem qualquer política pública de bem-estar social e que se veem do mesmo lado de empresários é algo de difícil compreensão. A luta de classes é uma realidade e nessa balança estamos perdendo cada vez mais.

Encerrando o disco, “Se Preciso For” é um hino a coragem, um chamado a luta e que faria o próprio Carlos Marighella ter orgulho de saber que existem muitos brasileiros que compreendem de fato a mensagem de enfrentar como for preciso qualquer sistema que nos impeça de viver como é do nosso direito. Por enquanto, os mais de 59 milhões de votos obtidos no segundo turno da eleição de 2022 demonstraram que o povo ainda reconhece que um país precisa cuidar uns dos outros e que nenhum empresário ou investidores da Faria Lima é mais importante do que a vida de qualquer ser humano.

A capa que representa o Brasil de 2022

A arte do álbum foi desenvolvida pelo artista Felipe Grave, que traz referências da polarização e de todo ódio quem vem sendo embutido ao Brasil com mais ênfase e sucesso desde o início do governo Dilma, quando diversas áreas econômicas, políticas e até militares jamais aceitaram que uma mulher estivesse à frente do maior cargo desse país, incluindo o incômodo de saber que uma pessoa que foi presa e torturada na ditadura militar agora era chefe de Estado.

Considerações finais

O Cannon of Hate trouxe ao mundo um álbum que retrata o Brasil de 2018 a 2022. É a história de um país e de um povo transmitida em 30 minutos de som e fúria, luta e coragem, ódio e esperança. Diante de uma democracia tão frágil quanto a nossa, precisamos manter a vigilância para continuarmos em liberdade. Por enquanto, a nossa democracia continua sendo de plástico e qualquer crise política ou econômica pode ser o estopim da total perda de direitos.

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