Em “Estranhos Noturnos” (2021), primeiro romance do jornalista Marcelo Mendez, é quase natural uma comparação com o livro “High Fidelity”, de Nick Hornby, que até ganhou uma adaptação para os cinemas com o ator John Cusak no ano 2000. Mas não se engane, as semelhanças podem até existir, porém Mendez retrata os anos 80 e 90 vividos pelo personagem Hiram em uma Santo André marginal e periférica, com realidades muito diferentes dos personagens de Hornby. Pode-se dizer que o barato em Estranhos Noturnos é louco.
Com personagens que nos causam empatia, vamos descobrindo na narração em primeira pessoa do protagonista as vantagens e desvantagens de morar na região do ABC Paulista, num período de descobertas sonoras, efervescência cultural e a crescente busca por experiências que demonstrassem o verdadeiro sentido de viver intensamente. Claro, mesmo que esse “viver intensamente” fosse se jogar de cabeça em bebidas, drogas e discos de rock.
Ao longo da história, Hiram nos apresenta seus amigos, entre eles Shala Jones, Mukuba, Helinho e Silvinha. Sem contar os lugares, bares, shows, drogas e muitos, muitos discos desde o punk, MPB, blues e até metal, passando por faixas e momentos em que todos esses eventos se misturam e se tornam uma coisa só. No livro não há o conceito de música como pano de fundo da história, mas a música sendo a própria história, a válvula capaz de aliviar ou intensificar situações.
Mendez constrói com maestria um enredo que consegue prender seus leitores do início ao fim de capítulos. E esses capítulos ganham títulos incapazes de serem ignorados, ganhando de 7×1 o nosso interesse e curiosidade pela trajetória do protagonista, mesmo que ele rivalize continuamente com os seus pensamentos e ações. Hiram é um garoto no começo do livro e junto com o seu crescimento ao longo da história vemos que certas coisas não mudam dentro de si. Sem querer dar qualquer tipo de spoilers, é inegável que muitas das atitudes do personagem sejam consideradas burras e contraditórias, mas outras demonstram uma grande coragem e paixão pela arte e justiça. Claro que a justiça aqui pode ser questionada e somente o autor seria capaz de explicar tamanha vontade do protagonista na escolha de caminhos que podem prejudicá-lo por uma vida toda.

Mas acho que consigo explicar isso eu mesmo. Até porque todos nós temos um pouco de Hiram, nos sabotamos e acreditamos que certos momentos de prazer e felicidade não sejam para pessoas como nós. Desacreditamos fácil da gente, mesmo conseguindo superar o medo e ter a força bruta para encarar as pancadas da vida contra o nosso peito. No entanto, podemos deixar de reconhecer o amor, buscar por fugas durante o processo de crescimento e até menosprezar emoções e ideias que podem nos fazer evoluir neste mundo.
O problema é que às vezes surge aquele intervalo de consciência, no qual sabemos exatamente os erros que cometemos e sentimos vontade de dar um passo para trás, mas sufocamos esses momentos e seguimos na trilha da destruição. É como em certa passagem no livro que diz:
“Tudo falso. Uma grande mentira. Nada do seu reinado da noite anterior dura até a manhã seguinte. Ele acaba junto com o barato da cocaína que você cheirou na noite anterior. Vai embora, junto com o uísque coalhado que a muito custo você conseguiu vomitar no banheiro sujo de algum boteco do mundo. É tudo uma farsa. Você é um fodido, não um rei. Não existe poder, mas sim dependência, não tem euforia, ninguém está alegre. É só você. Fodido de ressaca com a cabeça explodindo de enxaqueca, lutando bravamente contra uma puta de uma depressão monstra que tenta tomar conta do que sobrou da sua alma”.
São algumas passagens como essa que tornam o destino de Hiram parecido com uma estrada para a fúria. Até o último capítulo não temos ideia de qual será a conclusão da história, porém é fácil torcer por um final que também possa simbolizar um caminho de salvação para nós mesmos.
Mendez criou uma playlist no Spotify que traz as diferentes músicas citadas no decorrer do livro, compartilho abaixo para quem quiser ouvir.
Se eu tivesse tido a chance de ler esse livro nos meus 18 anos, talvez teria me ajudado a seguir por outros caminhos. Se tivesse lido aos 25, poderia ter me alertado a me corrigir. Se fosse aos 30, me daria a chance de entender que é possível mudar… Mas hoje, terminada essa leitura em menos de uma semana, consigo enxergar que ninguém foge daquilo que se é, nem da própria escuridão que carregamos em nós e que nenhuma piscina de merda é funda o suficiente para quem quer buscar pela auto sabotagem.
Para comprar o livro basta acessar as redes sociais do Marcelo Mendez. Estranhos Noturnos nasce com um estilo de linguagem que lembra autores e romances autobiográficos no qual não é possível saber o que é de fato algo vivido pelo autor ou somente ficção. O legal das diversas situações da obra é que elas nos remetem a algo que provavelmente já vivemos ou temos de alguma forma lembranças parecidas.
Lançado pela editora Córrego, com apoio de leis de incentivo à cultura, Estranhos Noturnos conta com prefácio da atriz e diretora Fernanda D’Umbra, além de texto assinado pelo músico e agitador cultural Claudio Cox. O livro é recomendado àqueles que sabem que a vida não é só um pôr do sol bonito ao entardecer, mas que jamais irá se deixar vencer pelo silêncio da apatia.