
Jair Naves é um músico, compositor e cantor, além de um dos principais nomes cena autoral brasileira. Aos 17 anos começou na música integrando a banda Okotô. Na sequência, foi vocalista e um dos fundadores da Ludovic, cultuada banda do cenário independente e com a qual ele viajou por diferentes cantos do Brasil. Anos mais tarde se lançou na carreira solo, cuja discografia é formada pelos EPs “Araguari” (2010) e “Atirado ao Mar” (2015) e pelos discos “E Você Se Sente numa Cela Escura, Planejando a Sua Fuga, Cavando o Chão Com as Próprias Unhas” (2012) e “Trovões a Me Atingir” (2015). Após o lançamento de “A Flash of Feeling”, álbum feito junto à cantora estadunidense Britt Harris, no ano passado, em 2019 retoma sua carreira solo com o terceiro álbum de inéditas, “Rente”, produzido por ele mesmo, gravado e com mixagem por Zeca Leme (BTG Studio) e master por Fernando Rocha (El Rocha).
Certa vez escrevi no Facebook que ouvir “Ludovic” era uma experiência além da própria música. É como se tudo o que você sentisse ou quisesse dizer estivesse ali, naquelas melodias, naquelas letras. Como se o “indizível” estivesse exposto em carne viva, onde tudo é intenso e vazio ao mesmo tempo. Talvez esse seja o maior dom do Jair Naves, essa capacidade de ir além da própria música, assim como fez e continua fazendo no álbum “Rente”.
O álbum foi lançado no início do mês de maio e até hoje, sim, até hoje, ouço esse trabalho e encontro novos significados. Faixas como “Veemente”, “Deus não compactua”, “Alívio cômico / Palanque”, “Lampejos de lucidez”, “Hino dos Estados Unidos como toque do seu celular”, “Rente”, “Tudo grita” e “Sonhos se formam sem o meu consentimento” se misturam com a atual condição política e social do Brasil com os momentos íntimos de loucura que muitos de nós passamos dia após dia. Tudo com lirismo, uma dosagem poética e sem chegar perto de clichês, com frases impactantes que nos fazem refletir por horas e horas.
Com certeza, um dos melhores álbuns de 2019 e, de acordo com o próprio Jair, “esse disco é a reação de uma pessoa comum a mudanças muito simbólicas e significativas – tanto de espaço físico como às alterações drásticas no cenário político e na mentalidade coletiva”. Para o músico, “estamos todos esgotados mentalmente pelo excesso de estímulos, informações, tensão social, etc. Creio que a maior parte das faixas aborda esses temas, de uma forma ou de outra”, comenta Jair, responsável por todas as composições de Rente.

Jair também aceitou participar da série “Os 10 álbuns” do Nada Pop, indicando uma dezena de artistas e discos que o influenciaram na carreira ou até mesmo na vida. Antes da gente falar sobre os álbuns, vamos deixar o próprio Jair falar sobre a escolha desses discos:
“Talvez por ouvir música compulsivamente há algumas décadas e por escrever minhas próprias canções também há um tempo considerável, de uns anos para cá me vi prestando mais atenção em artistas de gêneros que nunca tinham me despertado muito interesse antes. Mais do que isso, comecei a ver paralelos entre o que eu faço e músicos de outras vertentes. Embora a sonoridade possa ser radicalmente diferente na maior parte dos casos, o processo ou o sentimento transmitido são muito familiares. Creio que esses dez discos listados abaixo me fizeram repensar muito do que envolve criar música e tiveram uma influência considerável em “Rente”, ainda que tal influência não se mostre sempre de forma explícita. Não são exatamente os álbuns da minha vida, mas acho que dá pra dizer que esses títulos renovaram meu entusiasmo e me mostraram possibilidades que iam além das que eu já havia explorado até aqui”, conclui Jair.
#044 – Os 10 álbuns de Jair Naves (Ludovic e Britt Harris)
01 – GAVIN BRYARS – JESUS’ BLOOD NEVER FAILED ME YET (1975)
Uma das gravações mais impactantes de todos os tempos. A história desse registro vale por si só: o Gavin Bryars achou uma cena filmada para um documentário sobre moradores de rua em Londres. Esse trecho de menos de 30 segundos, que acabou nem entrando no corte final do filme, registrou um homem improvisando uma canção de cunho religioso. Embora o misterioso cantor nem sequer apareça nas filmagens, de forma que jamais pôde ser identificado, sua voz pode ser ouvida claramente. A partir dessa gravação, repetida por inúmeras vezes, Bryars criou um arranjo grandioso e transformou aquilo em uma obra das mais comoventes. Dura 26 minutos e pode ser considerada como precursora de muito do que foi produzido nas décadas seguintes. Quando ouvi pela primeira vez, não só me deixou profundamente emocionado, mas funcionou também como um lembrete de que a música está em todo lugar e do quão limitadoras são as fórmulas convencionais do cancioneiro popular. Além disso, apresenta um bonito retrato de alguém em contato com a sua espiritualidade de forma individual, de uma intimidade e de uma entrega tocantes, sem ser via as religiões organizadas. Esse tipo de reflexão sobre dogmas religiosos também acabou aparecendo bastante no meu álbum mais recente.
02 – CHILE VENCERA (VÁRIOS ARTISTAS) – ANTHOLOGY OF CHILEAN NEW SONG (1962-1973)
Falando nos temas abordados em “Rente”, é fácil perceber o quanto questões sociais e políticas acabaram aparecendo nas letras. Nesse sentido, foi uma coincidência das mais inspiradoras ter achado num sebo essa coletânea de canções proibidas durante o período da ditadura militar no Chile. É um álbum dividido em quatro diferentes estilos e traz tanto nomes consagrados internacionalmente, como Victor Jara e Violetta Para, como cantores menos conhecidos fora do país. Ler as histórias que cercavam aquelas músicas e ver como governos ditatoriais tendem a demonizar seus artistas foi algo muito perturbador, especialmente levando em conta o que estamos vivendo no Brasil nos últimos anos. São canções de protesto de diferentes estilos, desde as mais panfletárias e dramáticas até as mais sarcásticas e até mesmo alguma voltadas para o público infantil. Essa pluralidade também acabou tornando esse título uma boa referência quando pensei em escrever algo que abordasse temas ligados ao que acontece conosco enquanto sociedade.
03 – DAVID BOWIE – BLACKSTAR (2016)
Incrível como alguém pode ter consciência de estar vivendo seus últimos dias e ainda assim produzir um trabalho como esse, que beira a perfeição. Toda vez que vou gravar algo novo, sou atormentado pela ideia meio absurda e paranoica de que aquele pode ser meu último registro. Ouvir algo feito com tamanho brilhantismo nessas terríveis circunstâncias é um negócio muito poderoso. Tudo nesse disco é de uma inspiração inacreditável: arranjos, execuções, timbres, letras, a parte gráfica… e com as revelações recentes sobre as condições da morte do David Bowie, “Blackstar” ganha contornos ainda mais mitológicos. Eu gosto também do fato do próprio Bowie ter nomeado como inspiração para esse título artistas como Death Grips e o Kendrick Lamar. Isso mostra o quanto ele fez questão de se manter atual até seus últimos dias. Um exemplo a ter sempre em mente.
04 – BING & RUTH – TOMORROW WAS THE GOLDEN AGE (2014)
Não lembro exatamente qual foi o disco que me trouxe para esse universo do que chama de “ambient music” (pode até ter sido o lado B do “Low”, para falar do David Bowie mais uma vez), mas foi algo que me devolveu um entusiasmo para o ato de compor e ouvir música que talvez estivesse se perdendo, depois de tanto tempo me dedicando a isso. Descobrir um gênero livre de muitas das amarras e fórmulas de composição de gêneros mais populares foi algo muito libertador. Mesmo sem palavras, existe uma carga emocional fortíssima no jeito que essas faixas se desenvolvem – ao mesmo tempo, é uma música que oferece ao ouvinte a possibilidade de criar suas próprias projeções ao que está acontecendo ali. Eu poderia ter citado o álbum seguinte dessa mesma banda, o “No Home For The Mind”, ou o “Discreet Music”, do Brian Eno, ou mesmo “The Disintegration Loops”, do William Basinski. Foram todos discos que me ofereceram espaço para reflexão num momento de muita ansiedade e incerteza.
05 – GROUPER – DRAGGING A DEAD DEER UP A HILL (2008)
Quase toda a discografia da Grouper é genial, mas esse em particular teve um efeito imediato em mim. Minha esposa me apresentou o “Dragging a Dead Deer Up a Hill”, e depois dessa recomendação eu fui atrás de tudo que a Liz Harris já lançou. São pouquíssimos os músicos de quem se pode dizer algo como “isso não soa como nada que eu já tenha ouvido”. A Grouper se encaixa nessa categoria. É um mundo muito particular, chega a ser difícil definir. A produção como um todo tem uma certa aura de mistério e indefinição, algo que eu já ouvi as pessoas classificarem erroneamente como “lo-fi”. Os discos dela me lembraram que nem tudo precisa ser cristalino, de acabamento perfeito, e que a construção de uma identidade artística vai muito além da busca pela perfeição em critérios técnicos, tanto de execução quanto de gravação. Tivemos a sorte de vê-la tocando no ano passado em uma igreja. Foi uma das experiências mais poderosas que tive com uma apresentação ao vivo em algum tempo. Definitivamente uma das minhas artistas preferidas em atividade.
06 – Los Crudos – Doble LP Discografia (2008)
As letras de “Rente” foram em grande parte escritas depois que eu me mudei para outro país. Muitos trechos falam da sensação de ser estrangeiro, da solidão e isolamento que você experimenta ao passar a viver em um lugar novo. Quando iniciei essa nova fase da minha vida, me lembrei quase de imediato dos Crudos, talvez o maior expoente do que se convencionou chamar nos EUA de “Latino Punk”. A urgência e coragem com que eles tratam os assuntos relativos a essa e a outras “minorias” (sempre bom colocar esse termo entre aspas) me deu força em alguns momentos difíceis, além de ter me inspirado a falar da minha maneira sobre questões relativas à imigração. É uma sonoridade da qual eu tinha me afastado um pouco, mesmo como ouvinte. Foi bom fazer esse resgate, me trouxe de volta muito da minha formação musical. Acredito que isso tenha se refletido em algumas das faixas do novo disco.
07 – J DILLA – DONUTS (2006)
Esse mudou tudo para mim. Transformou a minha visão do que é possível atingir fazendo música, de como é possível criar canções, me fez enxergar novas formas de transmitir ideias e sentimentos. Sei que é meio redundante colocar esse disco e “Blackstar” numa mesma lista, já que ambos possuem uma história semelhante, de terem sido feitos por pessoas em seus últimos dias e terem se tornado uma espécie de carta de despedida de seus criadores. Ainda assim, não poderia deixar de citar esse. J Dilla era um virtuoso à sua própria maneira, um poeta da transformação, alguém que via as coisas de uma forma que ninguém mais era capaz e construía sua mensagem a partir de uma combinação improvável de ideias pré-existentes. Obviamente não existem paralelos diretos de sonoridade entre esse disco e o que eu faço, mas “Donuts” me trouxe uma importante sensação de liberdade, de que não deveriam existir noções de certo e errado no momento da criação.
08 – LOVE – FOREVER CHANGES (1967)
Um dos mais cultuados nomes da história da música local do lugar para onde me mudei é o Love. Por algum motivo que eu desconheço, até então não havia dado muita atenção para essa banda, nem mesmo para o clássico disco de estreia deles, “Forever Changes”. Apesar do atraso todo, foi uma descoberta feita no momento certo. Os temas de paranoia, desilusão e questionamentos existenciais das letras soam incrivelmente atuais, embora esse álbum tenha sido lançamento há mais de cinquenta anos. Também foi uma boa referência em termos de músicas que são construídas em torno de bases de violão e ainda assim soas pesadas, encorpadas para as produções da época. A produção em si carrega certo experimentalismo, com diferentes linhas de voz cantando palavras distintas em determinados trechos. Sem contar que os arranjos de cordas são dos mais bonitos e adequados. Não soam como um corpo estranho na música, como acontece muitas vezes em discos de rock como esse.
09 – SYLVIA TELLES – AMOR DE GENTE MOÇA (1959)
Meu sonho é um dia gravar músicas minhas com arranjos orquestrados à moda dos anos 1940, 50 e começo dos 60. Acho que estou dando pequenos passos nessa direção. Em “Rente”, por exemplo, já são três músicas com cordas. Nesse ritmo, daqui a uns 20 anos chego lá (risos).
Voltando ao “Amor De Gente Moça”, é o disco preferido da minha mãe. Recentemente, ela me deu uma cópia em vinil. Sempre que a saudade do Brasil batia mais forte, eu colocava isso para tocar. O repertório é dos mais representativos – “Dindi”, “De Você, Eu Gosto”, “A Felicidade” e mesmo “Demais”, que por muito tempo foi a música de encerramento dos meus shows, na nossa versão barulhenta, acelerada e provavelmente até herética para quem está acostumado com interpretações brilhantes como a que está nesse disco.
10 – FIONA APPLE – THE IDLER WHEEL IS WISER THAN THE DRIVER OF THE SCREW AND WHIPPING CORDS WILL SERVE YOU MORE THAN ROPES WILL EVER DO (2012)
Por último, mas certamente não menos importante. Definitivamente foi o disco que eu mais ouvi nos últimos dez anos. A não ser que tenhamos uma grande surpresa nos últimos meses de 2019, vai ser o meu preferido da década. Embora tenha escutado isso centenas de vezes, toda vez que volto para esse álbum descubro algum detalhe novo, seja uma nova possível leitura para algum verso, um detalhe na percussão, alguma coisa assim. Lançado em 2012, creio que “The Idler Wheel…”, com sua sonoridade baseada em pouquíssimos elementos, antecipou uma tendência de produção minimalista que marcou a música pop nos anos 2010 – assim como o primeiro do James Blake, por exemplo. Mesmo se eu estiver errado nessa teoria, continua sendo um disco irrepreensível. Letras impecáveis, interpretações matadoras, elementos percussivos dos mais inesperados. A Fiona Apple é uma das maiores artistas vivas e para mim esse álbum representa seu auge criativo até o momento.