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Esse diário foi dividido de uma forma que fosse possível dar uma lógica para o caos de episódios e coisas que aconteceram. Possivelmente não vou conseguir fazer isso, mas fica a tentativa! Portugal e Bélgica foram uma espécie de introdução da tour. Ainda não tínhamos passado por perrengues e cansaços consideráveis. Tudo era novidade, trombamos um monte de amigos, sabíamos mais ou menos onde íamos dormir, tínhamos uma van esperando a gente e os shows tiveram um espaço de tempo razoável entre eles.
Isso mudou nessa segunda parte (classificada por mim) da tour que na minha opinião foi a mais cansativa e insana! Saindo de Namur, na Bélgica, pegamos pela última vez a van com a Ines e partimos para o Reino Unido, iniciando os trabalhos em Glasgow, na Escócia. Nos despedimos do Ítalo, que voltou para sua casa em Berlim, e partimos em 7. Um parêntese bom de abrir é que estávamos em 4 da banda e a “comissão de audiovisual” em 3 (Joyce, Raquel e Paola). Isso quer dizer que tínhamos os pertences pessoais de todo mundo, os instrumentos (exceto o baixo) e os equipamentos de gravação que foram usados. Enquanto estávamos de van essa parte das malas não tinha sido algo que nos chamava atenção, porém na segunda parte da viagem isso passou a ser um elemento, vamos dizer assim, digno de nota. Nossa passagem pela Escócia e Inglaterra foi montada através de nosso contato com nosso amigo de Bristol, o lendário Punky Steeve! Então, basicamente fizemos os rolês à moda punk paulistano, carregando tralha pelo transporte público andando em “banca” de um lugar do subúrbio para outro.
Glasgow – Escócia
E dá-lhe mais um avião Ryanair. Uma espécie de Kombi aérea que transporta as pessoas pela Europa. Para ganhar mais grana essa empresa apertou as poltronas ao máximo sem possibilidade de reclinar visando aumentar o número de passageiros. Três horas nesse avião é um bom teste de resistência. Depois dessa viagem chegamos a tão temida e falada imigração do Reino Unido! O fator principal de eu não ter levado o meu baixo foi devido ao conselho de muita gente dizendo que a entrada pelo Reino Unido com instrumentos musicais poderia ser caracterizada como trabalho e assim existia a possibilidade de sermos barrados. Por isso não levei o meu baixo, para não dar nenhuma zica (e confesso que a preguiça não fez eu ter nenhuma resistência contra isso). E apostamos que a guitarra do Jandoza não daria problemas, porque a Paola entraria com ela na parte que controla os Cidadãos Europeus. Bom, chegamos com esse receio e o que temos a falar é que esse perigo era tudo lenda urbana! Não porque a imigração de lá é suave, mas porque as malas são despachadas anteriormente e o fiscal da imigração nem vê as nossas bagagens. De qualquer forma passamos todos na mesma cabine e por incrível que pareça o fiscal foi simpático, sobretudo pela nossa versão a qual dizia que uma europeia que morou no Brasil estava levando amigos brasileiros pela Europa para fazer turismo. Se algum fiscal da imigração do Reino Unido tiver lendo esse texto, avise seus amigos que as bandas só querem ir tocar e ir embora!
Chegando na Escócia pegamos um táxi e já teve o estranhamento com o volante do lado que para nós é de passageiro. Na primeira vista do trânsito achamos por um momento que um cachorro tava dirigindo o carro antes de lembrar essa peculiaridade do Reino Unido. De céus azuis e calor chegamos na garoa e céu cinza da Escócia! A Escócia é como um filme britânico antigo. Visual cinza, arquitetura gótica, construções escuras – tudo lá parece meio retrô, só que moderno ao mesmo tempo. A impressão que dá na cidade é que a capa e a estética das coisas são antigas, mas o conteúdo é extremamente moderno. Depois da chegada à cidade nos dirigimos ao PUB para esperar o camarada do coletivo 161 que ia acompanhar a gente. Foi quando conhecemos talvez o maior personagem dessa jornada, o Garath! Ultra (como chamam os torcedores organizados pela Europa) do Celtic ele manja sobre tudo ligado ao submundo de Glasgow e foram muitos “educativos” os dias com ele. Pegamos o trem, partimos para o subúrbio da cidade onde um camarada do coletivo deixou o apartamento dele para a gente ficar enquanto estivéssemos por lá. O subúrbio de Glasgow não é como os subúrbios que estamos acostumados, e isso faz com que a gente não consiga diferenciar muito um lugar do outro.
Falando sobre o pico que tocamos, basicamente chegamos a um bar com uma aparência bastante chique, o 13th Note, do naipe daqueles que tem na Vila Madalena aqui em São Paulo. Dentro do bar tinha uma escada que dava para o porão e é lá que aconteciam os shows! Outra coisa que aprendemos é que o que achamos que é pico de playboy em São Paulo não necessariamente é por lá. O maior acesso a recursos materiais faz com que os lugares mais fuleiros tenham equipamentos de som da melhor qualidade, é possível decorar o lugar, reformar, etc.
Por motivos de força maior acabamos chegando em cima da hora, lamentavelmente e não conseguimos trocar muita ideia com a galera do evento. Foi uma ramelada nossa! Dificilmente as pessoas das bandas vão ler esse texto, mas fica aí o pedido de desculpas pra galera! De qualquer forma, conseguimos ver todas as bandas e todas eram muito boas! Primeiro veio a Death Bed, que já deu pra ver que a noite seria de sabugada na orelha. Bratakus é uma dupla de minas que tocam com uma gravação de bateria, e fazem questão em dizer que não estão procurando bateristas! O zine delas é bem foda, as artes das camisetas e adesivos muito bem pensados. E pra finalizar rolou o show das bandas de Gay Panic Defense e Droves. Som extremo e rápido! Pra quem curte queercore é imperdível conhecer!
Na rua, notamos que a subcultura de Glasgow é dividida entre zonas antifascistas e as zonas de influência da extrema direita, dentro do que conhecemos é tudo bem determinado. Tipo até a árvore “y” tá sussa. Passou no prédio “x” é melhor ficar esperto. Pelo menos foi o que a gente entendeu do inglês escocês que é muito difícil de entender (segundo as pessoas que falam inglês me disseram por que eu não entendo nenhum tipo de inglês!). No geral a cidade é bem tranquila, mas em relação a conflitos de rua, pelas histórias que escutamos me pareceu a cidade mais violenta de todos os lugares que passamos.
Londres – Inglaterra
E lá vamos nós de Glasgow para Londres de busão. A gente aqui no Brasil tá acostumado com os “cometão” que corta o país inteiro e normalmente tem um espaço maior pra a galera aguentar a estrada. Bom, se o avião tava ruim vocês imaginam o ônibus! O ônibus reclinava o mínimo possível, mais uma viagem destruidora de costas pra fazer, dessa vez com 8 horas para não ter dúvidas! Chegando a Londres umas 5 da manhã portando nossas mil malas, ficamos algumas horas esperando o horário de pico da manhã passar para poder pegar o metrô e ir para o pico que íamos tocar.
O pico aparentemente era no subúrbio de Londres. Notamos isso pelas excursões das escolas no metrô. Quando entramos, tinha um monte de alunos com uniformes do tipo da escola que o Will Smith estudava no seriado “Um Maluco no Pedaço”, e conforme íamos andando perto da estação que íamos descer começava a aparecer alunos tipo de escola pública com uniforme parecido com os do Gabriel Ortiz (Escola Pública da Zona Leste de São Paulo) dos anos 90. Aí já tinha negros, hindus, latinos, muçulmanos, etc. A composição étnica e cultural nas ruas de Londres é muito diversa! Chama atenção até para a gente de São Paulo. Isso é muito legal, transforma a cidade mais acolhedora pra quem é de fora.
Chegando ao pico, o The Bird Nest, era um tipo de lugar que estávamos mais acostumados nesses anos de banda. Mais underground e “sujo”, porém com um bar cheio de cerveja daquelas que aqui é cara pra caramba. Deixamos as muambas lá e colamos pra dar um rolê em Camden Town, que é tipo uma Santa Ifigênia, cheia de comércios, muvuca na rua, etc. Dá pra sacar que tem mais trambiqueiro do que tínhamos visto até então e que rola um “fluxo” ali por debaixo dos panos. Mas é bem mais tranquilo que aqui; no Reino Unido me dava impressão que até o submundo era institucionalizado e seguia regras dentro de uma lógica. Parecia que havia uma permissão pra burlar as regras. Parece que tem treta, mas ninguém vai morrer ou ser preso. Você ocupa prédios, mas não vão tacar bombas de helicóptero na sua cabeça pra fazer desintegração de posse. Você catraca o transporte público, mas ninguém vai te fritar na porrada por causa disso. Se você tiver overdose de droga vai ter um hospital. Como disse, fiquei pouco tempo e não entendia muito do que as pessoas falavam, era só uma impressão mesmo. A gente no Brasil normalizou tanto a barbárie e ausência de direitos mínimos que quando entramos em um contexto um pouco diferente a gente acaba estranhando, por exemplo, o fato de ter poucas pessoas dormindo na rua. Veja bem, não é que não existe pessoas dormindo na rua, é que não é uma situação extrema como a nossa que provavelmente só em São Paulo deve ter o equivalente a população de Londres inteira sem casa.
Desse passeio voltamos para o bar e aí já começamos trombar os punks que colaram no som. Tava a galera na porta numa espécie de trailer em uma praça com umas banquetinhas. Eu quis me fazer de durão, mas na real bate um sentimento de tocar com a sua banda em Londres. O boom do punk que teve lá, se lembrar do The Clash e outras bandas falando sobre os lugares que passamos, faz a gente ficar brisando toda hora. Quando você começa a tocar, dar o nome a banda, você nunca imagina nem sair de São Paulo, chegar a tocar em Londres e ver sua banda lá no flyer é uma sensação bem legal. Mesmo décadas depois da explosão do punk pela cidade sempre fica um resquício do passado nas coisas e na cena como um todo.
Chegando lá já trombamos dois camaradas brasileiros que viram o flyer e foram lá tomar umas com a gente! E trombamos o Limão que está morando lá. Ele (Kob 82, Invasores de Cérebros) deve ter tocado em todas as bandas de São Paulo que ainda não tinham acabado. Ouçam a nova banda dele com os gregos, Ékrixi! Outra coisa muito boa quando você não fala nenhum segundo idioma é trombar pessoas que falam português e espanhol!
Tocamos com a banda crust Scum System Kill, Butane Regulators que manda um punk rock e o Abandon Cause devastador. No nosso show, em minha opinião, foi o top 3 de todos da vida do Desacato em relação a insanidade. O lugar que rolava as bandas era apertado, pra ilustrar a galera quebrou vários copos e quase quebrou meus dentes com o microfone! Ficou no nosso hall junto com a virada cultural ilegal no vale do Anhangabaú, o show no Baderna com nossos amigos argentinos do Bruzckos que destruiu todos os lustres do pico e um no extinto Espaço Walden que a galera derrubou o teto de gesso do pico.
Esse som foi tipo um descarrego. Depois fomos recebidos no Squat chamado The Church. É uma igreja evangélica ocupada. Eu não sei se o nome era esse, ou se eles tavam me falando que era uma igreja mesmo. Enfim, as barreiras idiomáticas de sempre! O prédio é enorme tem vários andares, tipo como se ocupássemos uma Universal. Essa é uma ocupação gerida pelos punks da cidade.
Uma coisa digna de nota é que nesse rolê percebemos que em muitos shows punks tem no final do flyer. No dogs, no nazis. Eu imaginei que dog era uma gíria, mas depois me explicaram que a galera levava os cachorros pros bares mesmo, e isso dava confusão porque os cachorros tretavam entre eles ou ficavam irritados com o som. Então na real o flyer queria dizer isso mesmo, vá pro som e deixe seu dog em casa de boa. Isso resume um pouco o que foi essa nossa passagem em Londres, por algum motivo que não sei explicar!
Conheça o som das bandas citadas nessa segunda edição do diário:
Gay Panic Defence
https://gaypanicdefence.bandcamp.com/
Droves
https://drovesgrind.bandcamp.com/
Death Bed
https://deathbedness.bandcamp.com/releases
Abandon Cause
https://abandoncause.bandcamp.com/album/power-failure
Butane Regulators
https://onestepoutside.bandcamp.com/
Scum System Kill
https://scumsystemkilluk.bandcamp.com