Punk, hardcore e alternativo

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A arte e as catracas – Sobre o direito à cidade e a voz das/os de baixo

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Flyer retirado da página do Movimento Passe Livre São Paulo – Clique AQUI.

Final de 2015. Mal digerimos a ceia de natal e eis que os noticiários nos dão uma bela notícia para engasgar a farofa natalina – diversos prefeitos e governadores pelo Brasil afora resolveram mais uma vez aumentar repentinamente as tarifas do transporte público no início do ano. Na maioria dos casos, partidos políticos rivais dentro do circo da democracia representativa estão de mãos dadas agindo em conjunto como se fossem melhores amigos. Em São Paulo, por exemplo, o prefeito “Gato” Fernando Haddad, do PT, agindo em parceria com o governador Geraldo Alckmin, do PSDB, se mostraram entrosados como as duplas de nado sincronizado em uma competição olímpica. Uma parceria bem distante daquele “Corinthians x Palmeiras” encenado nas disputas eleitorais, já que no final das contas, as empresas que bancam suas campanhas são praticamente as mesmas. Afinal, nesse tabuleiro político institucional dentro do capitalismo, ideologia é pura formalidade para burocracia ver.

Como sempre, para enxugar os já mínimos direitos sociais que ainda restam à população, os governos em rabo preso com empresários utilizam argumentos duvidosos e superficiais potencializados como verdades absolutas pela mídia corporativista. E como cereja do bolo, ainda fazem uso político do aparato repressivo para calar qualquer manifestação crítica protagonizada pelos movimentos sociais e pela população revoltada, trazendo as já costumeiras cenas de barbárie pelas ruas, o já conhecido massacre da repressão militar a civis desarmados.

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O debate está fervendo nas ruas e na mídia, nesse escrito gostaria de pensar na relação existente entre o transporte público, o direito à cidade e as manifestações culturais e artísticas, enfatizando mais a chamada “cultura de rua” que na grande parte dos casos são protagonizadas pela juventude. O que tem a ver uma coisa com a outra?

Para citar alguns exemplos, vou pensar no contexto urbano da cidade de São Paulo, e aí me vem à cabeça as reuniões do pessoal do RAP na São Bento nos anos 80, os shows punks pelos subúrbios da cidade e os saraus da periferia, mais recentemente. Poderia mencionar o samba, os sound systems, o funk, a lista é ilimitada, mas vou tentar me ater aos primeiros três exemplos para ilustrar melhor.

Normalmente, esses tipos de movimentos culturais são iniciados por jovens que não se ajustam à “normalidade” e consequentemente acabam tendo suas vozes caladas pelos agentes da ideologia dominante. Dentro dessa situação de esquecimento calculado, numa espécie de improviso e inspiração encontram na arte formas de se expressar e fazer suas vozes ouvidas. Devido a esse contexto de exclusão é natural que os conteúdos sejam bastante críticos e subversivos. E sendo assim, como a história não cansa de nos mostrar circular informação crítica e questionadora deixa os poderosos atônitos e preocupados, e em um roteiro que se repete com frequência, não demora muito o bombardeio do poder dominante contra essas vozes dissonantes.

Em tempos de cultura massificada, normalmente o ataque costuma acontecer em dois momentos distintos: a primeira investida é atacar através da difamação e boicote, usando julgamentos por critérios de valor pré-estabelecidos (pela mídia, currículos escolares, autoridades acadêmicas, etc.) ou associando os grupos que escapam das regras à preconceitos sociais estereotipados pela visão de mundo conservadora; e quando não são bem sucedidos nessa primeira investida, num segundo momento utilizam a arma da cooptação ou absorção tramada pelos mesmos meios que antes difamavam. Para acontecer esse encaixe do marginal ao aceitável, é acentuado o caráter estético com o intuito de diluir cada vez mais o conteúdo contestatório.

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Como pulverizar uma expressão anti-sistêmica? A receita se repete e até parece simples: elencar alguns poucos indivíduos escolhidos, direcionar vários benefícios a eles e arquitetar uma hiper exposição para um sucesso repentino no mercado e na grande mídia. A ideia de hierarquia e a estrutura de poder vertical são bastante eficazes em destruir as força das bases criando ídolos facilmente manipulados pelas classes dominantes – é a equação perfeita para dissolver qualquer coletividade potente. O sistema divide e conquista, a tendência é que os indivíduos em vez de agir para a construção coletiva e solidária passem a direcionar suas forças para se incluir no mercado, e por meio de uma competição, subir ao posto mais alto dessa pirâmide, ser o escolhido da vez. E é claro, menos de 1% dessas pessoas chegaram (chegam, ou chegarão) nesse ponto. Está aí a matemática da cooptação e divisão através da competição, é a famosa estratégia do capital para a dominação.

E de novo, enrolei e não falei sobre o que o transporte público tem a ver com isso! Pois eu digo, tem tudo a ver. Nessa estratégia de divisão o que é uma das coisas mais determinantes para o enfraquecimento dos laços de solidariedade e para a dominação? É a divisão gerada pela fragmentação espacial! Pulverizando os movimentos em diversos micro grupos pela cidade e dificultando seu intercâmbio, é muito mais fácil deixa-los isolados a mercê do que o poder centralizado demanda. Apesar de a internet diminuir distâncias, sem a empatia gerada pelo contato pessoal é bastante fácil para os poderosos isolar os grupos. Veja só o exemplo da timeline do facebook que direciona as visualizações fazendo com que os perfis se conectem somente com as pessoas que já estão em contato e que possuem interesses parecidos, criando assim ilhas de pequenos grupos que somente dialogam dentro da sua área de interesse. O contato entre as diversas realidades e o deslocamento espacial das produções artísticas e culturais pela cidade são muito importantes para que a diversidade e criatividade sejam democratizadas e fortalecidas.

Como faziam as pessoas que moravam na periferia de São Paulo para chegar à São Bento para se encontrar e assim circular informação sobre o RAP? Como os caras do extremo sul dos Racionais se encontraram com os caras do extremo norte? Como as gangues punks dos subúrbios iam para a loja “Punk Rock” na Galeria do Rock se encontrar? Como um sarau periférico consegue fazer eventos em conjunto com outro sarau de outro lugar da cidade? A resposta é até óbvia, não? Obviamente existem aqueles que utilizam o transporte privado, no entanto, a grande maioria se locomove pelo transporte público. Há alguns anos lembro que saia da zona norte para ver shows no Butantã, ABC, Suzano, São Mateus e por aí vai. Como? Ônibus, trem, metrô, é claro. O transporte público é uma peça fundamental para a circulação de informação, troca de experiências e organização entre os/as de baixo. Em um contexto urbano essa necessidade se multiplica.

Entre nós, é bastante comum a crítica que os jovens de hoje são mais preguiçosos e não comparecem aos eventos, preferem ver no youtube ou coisa parecida. Que o punk se concentra somente na região central. Que o RAP está cheio de “panelas” que não dialogam. Obviamente essas questões não acontecem apenas por um motivo, porém em um fator de bastante importância para acontecer isso é a limitação do direito a cidade. Com toda a certeza a preguiça não é um traço marcante de uma geração inteira, mas por outro lado é certo que se trata de um traço importante de nossa época a inviabilidade de grande parte da população pagar o altíssimo valor da tarifa, já que as prioridades do transporte público são direcionadas às máfias dos transportes e as políticas públicas aos automóveis. Pensando no mínimo possível de gasto com transporte, de saída a pessoa já desembolsa quase 10 reais! O prefeito diz que aumenta abaixo da inflação, mas quantos de nós, sobretudo a juventude periférica teve um reajuste do salário sequer dentro da inflação? A maioria sequer tem um reajuste! E isso sendo otimista e não mencionando a grande parte dos desempregados (lembrando que o bilhete para desempregados dura apenas três meses). A juventude não é preguiçosa, ela é limitada e castrada pelo poder!

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A quem interessa a centralização da cultura de rua em poucos pontos controlados pelo Estado e/ou Mercado? Os megaeventos culturais geridos pelo Estado em detrimento do fomento à autogestão da produção cultural? O punk longe dos subúrbios? O RAP embranquecido na rua Augusta com seus semi-deuses escolhidos a dedo por empresários da indústria musical? Os saraus isolados uns dos outros?

A vida da “cultura de rua” depende da circulação espacial, é uma condição de existência! Sem a circulação de pessoas seu conteúdo original e rebelde é diluído pelos poderosos, afinal é muito mais fácil pra eles utilizar de seus recursos econômicos e produzir uma propaganda espetacular de seus conteúdos conservadores, do que entrar no cotidiano e influenciar os diversos becos e garagens da cidade. É perigoso para as classes dominantes ter as classes populares circulando, dialogando e trocando informação e conhecimentos! A arte sempre é política, cabe a nós dar a ela ou um tom de ruptura, ou de manutenção das coisas como estão.

Textos

Tarifa Zero
http://tarifazero.org/tarifazero/

Movimento Passe Livre – SP
http://saopaulo.mpl.org.br/

Tarifa zero é realidade em 12 cidades brasileiras
http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2016/01/tarifa-zero-e-adotada-em-86-cidades-de-24-paises-no-brasil-sao-12-municipios-que-aboliram-a-cobranca-3066.html

Quais as possíveis alternativas ao aumento da tarifa de ônibus em São Paulo
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/01/16/Quais-as-poss%C3%ADveis-alternativas-ao-aumento-da-tarifa-de-%C3%B4nibus-em-S%C3%A3o-Paulo

São Paulo, R$ 3,80. Buenos Aires, R$ 1,00 – Por que os ônibus em Buenos Aires custam quase quatro vezes menos que os de São Paulo – e são melhores
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2016/01/sao-paulo-r-380-buenos-aires-r-100.html

Tarifa não é dinheiro, é tempo
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/18/opinion/1453123446_710592.html

Breve tratado da imobilidade urbana
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/01/1729514-breve-tratado-da-imobilidade-urbana.shtml

Tarifa de transporte e a tal da conta que não fecha
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/raquelrolnik/2016/01/1729021-tarifa-de-transporte-e-a-tal-da-conta-que-nao-fecha.shtml

Aula pública: Tarifa Zero e o aumento no transporte
http://www.diplomatique.org.br/multimidia.php?id=66

Áudio

Podcast #48 – Movimento Passe Livre-SP e Ricardo Guimarães
https://desobedienciasonora.milharal.org/?s=passe+livre

Documentários

Revolta do Buzu – 2003 – documentário completo de Carlos Pronzato
https://www.youtube.com/watch?v=dQASaJ3WgTA

Amanhã Vai Ser Maior – Revolta da Catraca – Florianópolis (2005)
https://www.youtube.com/watch?v=mq9iRIyz-7U

A PARTIR DE AGORA – As jornadas de junho no Brasil
https://www.youtube.com/watch?v=3dlPZ3rarO0

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