Ouvir “Insecta”, single da banda paulista Gomalakka, me fez lembrar um pouco da sonoridade de duas outras bandas brasileiras dos anos 1980. Não só pela música, como também pelo vocal da Ciça Bracale, que além do timbre semelhante ao de Marielle Loyola, ainda possui certas semelhanças no estilo de cantar.
As bandas das quais me refiro se chamam Escola de Escândalos e Arte no Escuro, ambas com Marielle no vocal, sendo a primeira oriunda do “Rock de Brasília”, formada em 1982 e que nasceu junto com o Legião urbana e Plebe Rude. Não preciso dizer que a Escola de Escândalos não conseguiu alcançar o mesmo sucesso das outras bandas de sua época e, talvez por isso, seja uma das bandas mais subestimadas da história do rock nacional. Até onde pude pesquisar, a banda nunca chegou a gravar um disco oficialmente, mas em 2016 lançaram um videoclipe da música “Complexos” em memória a um dos guitarristas já falecidos do grupo com a participação do Gabriel Thomaz, do Autoramas.
Após o fim da Escola de Escândalos, em 1986, Marielle fez parte do Arte no Escuro, banda que possivelmente inaugurou no Brasil o “dark pop” e tinha uma sonoridade bem antagônica para as rádios FMs da época. Em 1987, lançaram um álbum com oito faixas e entre as músicas mais conhecidas desse trabalho estão “Beije-me cowboy” e “Na Noite”. Sendo sincero, gostaria de ouvir uma regravação da faixa “Vencidos” na versão e voz da Gomalakka.
Em busca de informações sobre possíveis referências dessas bandas nesse novo trabalho da Gomalakka acabei batendo um papo longo com a Ciça Bracale, onde nossos assuntos se misturaram com a “importância da arte”, política, amizade e rumos musicais.
“Desconheço, que legal, vou pesquisar. O jeito de cantar no novo disco mudou um pouco sim. Senti umas vontades de ter mais profundidade, porque esse momento surreal que tá rolando à nossa volta pede menos superfície. Então, foi um movimento natural. Uma resposta do corpo a essa angústia”, explica Ciça quando perguntei sobre as referências das duas bandas no som da Gomalakka.

“Vou admitir que não houve muito estudo. Foi mais umas vontades. Vontade de urrar ou sussurrar. Sem meios termos, sem superfície. Mas legal saber que lembra essa sonoridade 80. O Felinto me disse mais ou menos a mesma coisa. Fiquei feliz”, diz. Felinto é um artista/ músico com trabalho diversificado e que busca dentro da sua sonoridade ofertar imagens e sons que podem sem considerados de cunho mais espiritual ou voltados – como ele mesmo diz – para uma expansão de consciência. Pode-se dizer que seu mais recente trabalho, o “Dves T Lovwe”, seja perfeito como trilha sonora do filme K-Pax (sim, sou fã desse filme e da trilha sonora também).
Ciça continua conversando e contando que o novo álbum da Gomalakka será lançado em 15 agosto, sendo nove faixas e com lançamento pela Howlin’ Records com apoio da Cérebro Surdo Produções. O nome desse trabalho é “Quem Vai Ficar Até o Fim da Festa” e isso tem um motivo. Chegamos lá.
Praticamente do nada soltei uma pergunta: “fazer arte no Brasil atualmente é um ato revolucionário por si só?”. Eu mesmo não teria ideia de como responder essa pergunta, mas a Ciça fez uma reversão e partiu de um ponto muito interessante. “O que seria fazer arte hoje no Brasil?”, questiona.
“Existe o circuito que vai sempre existir do mercado da arte, onde tudo é engolido, até mesmo as revoluções. E existem inúmeras redes de resistência que sempre estiveram trabalhando no escuro. Talvez não consigam ser reconhecidas como arte, mas também aí temos que pensar: reconhecidas por quem? A partir do momento que o status quo me reconhece como artista, a revolução ainda é possível? Eu acredito que a criação de outros sistemas de resistência hoje talvez seja o que podemos chamar de arte. O resto é decoração e tudo bem. Também é legal ter/ ver coisas bonitas. Mas eu não sei se tenho o conhecimento necessário sobre esse tema. São pensamentos vagos”, conclui.
Sua resposta ecoou dentro de mim e trazia um outro tipo de questionamento. Eu insisti: “Mas a música não seria uma forma de combate, não apenas em conteúdo, mas em não alienação ao próprio indivíduo sobre si?”. Aproveitei para questionar ainda se nós “não estávamos filosofando demais”, ela riu e respondeu que “a música é uma necessidade”. Era como aquela frase do Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta”.
“A música desconhece barreiras e esse é o mágico. Eu sou mãe e não desisti da música. Apesar de tudo indicar que esse seria o melhor a fazer. Flora (filha da Ciça) não tem três anos e já reconhece a importância da liberdade na música. Quando me vê tocando, por exemplo. Isso é uma microrresistência. Ela pode ser reproduzida num radinho de pilha ou no telão de um estádio. Claro, existe também o mercado, mas a música mesmo não precisa do mercado para existir. Mas claro, você pode usar a música como o instrumento direto de luta. Eu venho da área de educação. Eu acredito no diálogo. Acredito na construção coletiva. Acredito nessas sinapses nervosas, toda vez que você encontra alguém. Mas quando a música bate, é mágico. Você já não é o que foi há três linhas ou dez segundos atrás. E nesse sentido é transformadora. E nesse sentido é revolucionária. Então, respondendo à sua pergunta, fazer música, pensando na potência que ela pode alcançar de transformação, de si mesmo e do seu entorno, é um ato revolucionário. Porque criar movimento é hoje um ato revolucionário. Estar parado é morrer. Ou ser engolido por toda essas trevas”, comenta Ciça em um acesso instigante de pensamento.
Se você leu essa matéria estilo “jornalismo gonzo” até o momento, obrigado. Agora o papo começa a ficar ainda mais intenso, onde o novo álbum da Gomalakka ganha corpo. Antes, vale dizer que o último lançamento da banda tinha sido em 2016, com o single “Armada para causar”, que segundo a Ciça tinha um significado de “resistência” que talvez poucas pessoas tenham percebido. “Foi uma necessidade lançar naquele momento. Eu havia acabado de ser mãe e eu queria dar uma resposta para muita gente perto de mim que eu não iria parar porque eu tinha me tornado mãe”, diz. Mas é claro que as turbulências pessoais, consequências da vida, acabaram diminuindo o número de ensaios. Porém, como dito acima, “a arte existe…”.
No segundo semestre de 2017, a banda começa um movimento para reunir músicas para um novo lançamento. É importante dizer que a Gomalakka existe desde 2005 e encontrar um repertório – com base em músicas antigas e não gravadas – não foi difícil. A banda, com base em tudo o que tinham vivido até o momento, começa a criar uma nova proposta e postura. “Era como se fosse virar uma página, não separado do que a gente foi, mas houve um período de transição. Eu era uma jovem cheia de petulâncias (boas) e agora tinha uma vontade de falar de assuntos mais profundos e incômodos que estávamos sentindo”.
Após fechar o repertório do disco, a banda percebeu que o peso do álbum era totalmente diferente do que o próprio público esperava da banda. “Cansei de ouvir que para animar a festa queriam chamar a Gomalakka, e tudo bem. A gente tem esse ar meio festivo, mas as letras nunca foram só festivas. Elas sempre foram de duplo sentido, usando do deboche – a arte pode ser consumida em diversas camadas”.
Para Ciça, os duplos sentidos se referem de como a arte chega até o público e de como a interpretação individual pode variar o seu contexto não só de pessoa para pessoa, como de um próprio momento para outro. “A mensagem nunca será a mesma que você propôs. A pessoa sempre irá ler através do filtro dela e transformar para ela aquilo que faz sentido”, resume.
Sobre o título do álbum – Quem vai ficar até o fim da festa – Ciça explica que o nome surgiu da faixa “Gravidade”, com o intuito de apresentar ao público que a banda possui outras reflexões e sonoridades e, ao mesmo tempo, um pensamento que reflete a própria história da banda, que envolve mudança de integrantes de cidade, nascimento de filhos e a própria rotina do dia a dia.
Em relação a faixa “Insecta”, Ciça comentou que existe uma referência de “Metamorfose”, livro do escritor alemão Franz Kafka, mesmo não sendo algo claro na música. “Existe um sentimento de agonia na pele, como se a gente estivesse se transformando em um ser abjeto. Ao mesmo tempo, vivemos um momento onde parece que todos os bueiros foram abertos com a saída desses insetos”, comenta em clara referência ao protofascismo vigente no País. “Como se estivéssemos nos deformando como humanidade”, diz.
Por fim, encerramos o papo sobre o futuro, que obviamente não se chegou a uma conclusão. Não se pode afirmar – ainda – que a banda volte a mudar seu estilo, indo para algo mais eletrônico ou, até mesmo, voltando a um ar mais festivo nas canções. A única coisa que se pode concluir com a Gomalakka, como a própria Ciça encerra, que “a celebração também é um ato revolucionário”.