
A arte de transformar os sentimentos em palavras tem sido uma constante na vida de Jair Naves, que traduz em suas músicas, e no mais recente álbum “Rente”, uma constante inquietação. A política, relações humanas e a busca por sentido nesse mundo viram poesia em músicas como “Deus Não Compactua”, “Veemente” e “Sonhos Se Formam Sem o Meu Consentimento”. Essas são apenas algumas das canções que refletem não só um estado de espírito, mas todo um universo de emoções que se mesclam as dores de ser quem somos em um mundo que não nos compreende e, de certo modo, nem faz questão disso.
Não bastasse o som, os shows ainda são tão ou mais intensos. Uma mistura incendiária de fúria e poesia, amor e ódio, força e medo.
Para melhor traduzir o que estamos tentando dizer, vou colocar abaixo os comentários do músico Valciãn Calixto, após o show do Jair Naves no último dia 9/11, em Teresina, no Piauí:
“(..) Ontem finalmente rolou o show do Jair [Naves] e eu pude ter a certeza que é exatamente tudo aquilo que eu sempre li e via meus amigos falar ao longo dos anos sobre a entrega e a performance, sobre o quanto o show é visceral, sobre como ninguém fica indiferente a um show do Jair, sobre como você é envolvido pela apresentação, sobre como o Jair consegue ser agressivo e contundente cantando uma música lenta, sobre como ele consegue ser dócil e doce cantando uma música agressiva e só um artista completo exerce tanto domínio sobre todos esses pilares que constroem uma grande apresentação fazendo dela uma experiência única e inesquecível porque o show do Jair Naves é inclusão, uma inclusão que permite todo mundo botar pra fora todo sentimento represado, todo desejo incompreendido, confessar medos, amores, sonhos, empodera o público e torna todo mundo ali corajoso suficiente pra também se expor, interagir com pessoas que estão vendo a primeira vez, abraçar, pular e cantar juntos. Esse é o show do Jair Naves (…)”.
Por esse e tantos outros bons motivos, resolvemos bater um papo com o Jair Naves sobre o seu processo de criação, o nascimento da arte ou, quem sabe, entender um pouco sobre o lugar onde a arte realmente começa. Viver já seria a arte em si? Observar? Com dar vazão as palavras no papel e, ainda mais filosoficamente falando, o que seria a arte que verdadeiramente o inflama.
Abaixo a nossa entrevista com um dos melhores compositores de nossa atualidade.
Jair, você possui algum método de composição, se é que podemos dizer assim? Qual o tipo de ambiente ou hora do dia que você considera mais propício para escrever? Ou nada disso interfere? O seu nível de composição me parece exigir não só um talento natural para isso, mas também estudo, bastante trabalho e até mesmo uma forma de observar o mundo muito peculiar.
JAIR NAVES – Antes de qualquer coisa, bom falar com vocês novamente.
Não sei se tenho hábitos de escrita definidos o suficiente para serem chamados de um “método”. Eu sei que deveria escrever muito mais frequentemente e fazer disso um hábito diário, mas me acostumei a concentrar esses esforços nas épocas em que estou finalizando as gravações de um disco novo. Tenho alguns cadernos que carrego sempre comigo e nos quais anoto frases soltas, temas ou versos que podem ser desenvolvidos futuramente, citações de livros que estou lendo ou filmes que vi, lembretes de trechos de conversas e coisas desse tipo. Nada muito além disso. Então muitas vezes as ideias brotam daí. Para criar e organizar o texto que vai ser inserido nas canções, sempre me ajuda muito ouvir as bases instrumentais gravadas. A música costuma ditar os caminhos a serem seguidos, sugerir sensações, imagens, estados de espírito. Então, se é que há um método, é sempre finalizar o instrumental primeiro e manter um caderninho em que eu possa anotar ideias a serem desenvolvidas mais tarde.
Uma vez que eu estou com os instrumentais prontos e um rascunho das melodias vocais na cabeça, começa a parte mais trabalhosa, que é a adaptação do texto à música. A língua portuguesa tem essa característica de palavras extensas, muitas vezes com três ou mais sílabas, de forma que fica bem difícil encaixar nas métricas das melodias exatamente o que eu quero dizer. Então tem aí também todo um esforço na busca pelas palavras certas, sinônimos que encaixem melhor, a forma mais nítida de expressar um determinado pensamento.
Outra preocupação que também tem se feito muito presente é a tentativa de não usar muito palavras presentes em composições antigas, ou mesmo tentar evitar tópicos sobre os quais eu já falei demais. Claro que a repetição é inevitável, mas me vejo mais e mais preocupado com isso.
Poucas foram as vezes em que escrevi a música e a letra ao mesmo tempo – “Silenciosa” e “No fim da ladeira, entre vielas tortuosas” são algumas dessas pouquíssimas exceções. Gosto delas porque acabam sendo bem espontâneas, sem muitos filtros, mas infelizmente é algo que não acontece muito.
Seus trabalhos, seja com bandas ou carreira solo, sempre foram característicos pelas letras. Uma mistura de poesia, contestação, algo que em algumas vezes até ficava em aberto e nos levando para diferentes significados. No entanto, há alguma música sua que você de verdade queria dizer determinada coisa, mas todos ou maioria do seu público interpreta diferente? Se sim, pode dizer qual?
JAIR NAVES – Creio que “Pronto Para Morrer (O Poder de uma mentira dita mil vezes)”. Lembro que na época em que estava escrevendo essa eu inconscientemente tentei brincar um pouco com aquele conceito de “Rashomon”, do Kurosawa, de uma história contada por todos os pontos de vista possíveis, embora nessa letra são todas narrativas sobre acontecimentos diferentes. Enfim, as pessoas costumam achar que é uma declaração de que o narrador da música está preparado para a morte, quando na verdade é bem o oposto disso. São todas histórias sobre como todos se apavoram quando confrontados de fato com o fim da sua existência, ou sobre como isso é usado como a maior ameaça possível a alguém. Mesmo no fim da música, quando é dito algo na linha “se o meu sonho de realizar, eu estarei pronto para morrer”, é algo na condicional, longe da realidade, mais uma força de expressão do que qualquer outra coisa.
Outra que ainda confunde muito as pessoas é “Qorpo-Santo de Saias”, do Ludovic. Já ouvi todo tipo de interpretação sobre essa, de perguntas feitas por pessoas que nos acompanham até mesmo em resenhas ou matérias sobre a banda. Minha ideia inicial era algo fazendo referência à história de vida do dramaturgo gaúcho Qorpo-Santo, alguém com o mesmo temperamento, sobre ele “em sua reencarnação feminina”, algo nessa linha. Mas, uma vez que você divide as composições com as pessoas, elas provavelmente virarão outra coisa. Não tem como você ter controle sobre isso. E tudo bem, acabo descobrindo novos significados junto com quem ouve essas canções.
“Veemente”, “Deus não compactua”, “Lampejos de lucidez”, “Rente”, “Sonhos se formam sem o meu consentimento” são apenas algumas das faixas do seu mais recente disco que podem ser consideradas letras com uma importante força de reflexão. Como funciona a sua própria “curadoria” para as músicas de um álbum como o “Rente”? Existem músicas que ficaram de fora e que poderiam ter entrado nesse disco? Você costuma guardar canções?
JAIR NAVES – Em todos os discos que eu fiz até hoje algumas músicas acabaram ficando de fora. Mesmo na época do “Trovões a me atingir” e do EP “Atirado ao Mar”, em que treze faixas foram lançadas, duas acabaram ficando de fora por não terem sido finalizadas em tempo. Com o “Rente”, foi a mesma coisa. Gravamos quinze músicas e acabamos usando doze. Uma dessas outras três certamente estará no próximo disco, já estou trabalhando nela com mais calma.
Sobre o processo de escolha das faixas que vão compor o álbum, busco composições que não sejam muito parecidas entre si, climas que ofereçam diferentes olhares para um mesmo sentimento, uma mesma situação. “Rente” tem muito disso. Creio que “Lampejos de lucidez” e “Escalas”, por exemplo, falam de assuntos muito semelhantes, mas com sentimentos quase opostos. A mesma coisa com “Deus Não Compactua” e “Alívio Cômico/Palanque”.
“A música brasileira está uma merda”, disse Milton Nascimento em recente entrevista para a Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo. Sem querer entrar ou te jogar em polêmica, mas ao mesmo tempo muito interessado em sua opinião a respeito. Morreram os tempos das letras que realmente importavam em nosso país?
JAIR NAVES – Eu acho que a importância dada às letras hoje é tão grande ou ainda maior do que era quando eu comecei a ouvir música. Percebo que o público, pelo menos o público com o qual eu lido, está cada vez mais exigente com o que é dito nas canções. E não é apenas uma exigência poética, mas também de posicionamento político. Creio que um verso infeliz, ofensivo ou discriminatório poderia ser facilmente perdoado nos anos 80 ou 90, por exemplo, mas hoje em dia não passaria despercebido. Temos vários exemplos de faixas célebres dessas épocas que não encontrariam boa recepção se fossem lançadas hoje, unicamente pelo seu conteúdo, pelas palavras escolhidas. E quando você analisa a trajetória de muitos dos artistas mais populares da atualidade, aqui ou lá fora, fica fácil perceber que muitos deles chamaram a atenção do seu público justamente pelo que expressam nas suas letras.
Quais os artistas que você acompanha e que possuem letras que você realmente gosta e admira? Consegue se identificar com alguma delas, qual a última música que realmente te marcou?
JAIR NAVES – Dentre os letristas brasileiros ainda em atividade, eu gosto muito do Siba. Acho que ele tem uma abordagem muito interessante às ideias que quer transmitir, um vocabulário raro e uma habilidade enorme de comunicação. O Douglas Germano também tem muitas dessas mesmas qualidades. Além disso, gosto de como alguns rappers por aqui tem lidado com a sua própria obra, revisitando discos antigos e modificando trechos que hoje lhes parecem incômodos, que não refletem mais como os autores se sentem. Acho um bonito exercício de reparação, uma prova de humanidade, um jeito muito digno de se posicionar.
Já entre os letristas estrangeiros, tem dezenas que eu poderia destacar, dos mais diferentes gêneros. Mas a primeira que me vem à mente é a Fiona Apple, especialmente pelo disco mais recente. É de longe o álbum que eu mais ouvi entre os lançados nessa década, e toda vez que o ouço me vem uma interpretação nova para algum trecho, ou algum verso genial que nunca tinha me chamado tanto a atenção. Esse frescor, essa longevidade para as composições, tudo isso é um feito dos maiores. Busco alcançar isso nos discos que escrevo.
A última música que realmente me marcou? Putz, deixa eu pensar. Se eu for totalmente sincero, creio que escolheria “When the party is over”, da Billie Eilish. Esse disco dela me impressionou por diversos aspectos, mas essa música é especial de um jeito que eu não consigo descrever. Tem alguma coisa de muito bonito, muito genuíno ali.
A sua vida tem se dividido entre países, mas a sua “vida artística” ainda é mais forte aqui no Brasil? Uma carreira internacional estaria em seus planos? Seu projeto com o NavesHarris, se é que posso chamar de projeto – ou melhor seria “casamento”? – alcançou um público além do Brasil? É possível mensurar as dificuldades de uma carreira artística em nosso país com as dificuldades no exterior?
JAIR NAVES – Essa é complexa, vai exigir uma resposta meio longa (risos). Minha vida artística continua toda por aqui, pelo menos por enquanto, por motivos que eu não consigo resumir em poucas linhas. Essa mudança de país é algo que não estava nos meus planos, foi repentino e totalmente por motivos pessoais, sem qualquer pretensão profissional. Uma decisão necessária para poder continuar tendo uma vida com a minha companheira. Não foi decorrente um planejamento de carreira, aquela coisa “vou tentar a vida de músico nos Estados Unidos”. Mesmo porque, sinceramente, não acho que seria muito adequado pra mim. Sou muito mais compositor do que instrumentista ou cantor, e meu trabalho é muito ligado ao meu idioma. Então só aí já temos um problema considerável para essa transição a um lugar novo, algo que apresenta uma necessidade de reinvenção em meio a todo um processo brutal de adaptação cultural e social, adequação profissional, contas para pagar, enfim, a coisa toda que envolve o simples ato de existir e sobreviver.
Pensando bem, também tem o lado de que eu sempre fui muito pouco ambicioso nesse sentido. Tudo que eu fiz até hoje tinha como objetivo principal minha satisfação pessoal e poucos planos estratégicos ou coisa que o valha. O mesmo se aplica ao NavesHarris. Eu conheci a Britt, ela tinha essas músicas inacabadas e eu me ofereci para ajudá-la a terminar essas composições, que sempre me pareceram brilhantes, escrever outras juntos e registrar tudo num disco. Ficamos super orgulhosos do álbum, estamos aprendendo juntos como divulgá-lo no contexto do circuito americano, que é um território novo para nós dois. Se sair algo a mais disso, ótimo. Se não, já estou feliz demais com os resultados dessa união. É um disco que retrata parte importante da minha história, como poucos até hoje fizeram.
Quais são os prazeres e agruras de uma composição? Qual a sensação de descobrir que algo feito por você, talvez em uma situação de questionamento existencial, também atinge outras pessoas e, em alguns casos, com o mesmo impacto que atingem você?
JAIR NAVES – O que me fez investir uma vida toda no exercício de escrever letras de música foi ter achado aí um meio para expressar sentimentos, angústias, preocupações e incômodos que até hoje eu não sei se consigo abordar de outra forma. E não existe prazer maior do que descobrir de que isso acaba alcançando outras pessoas. Toda vez que eu recebo uma mensagem de alguém dizendo que se enxergou em determinada música minha, ou quando alguém vem conversar comigo nos shows para expressar carinho por essa ou aquela canção, eu tenho que me controlar para disfarçar o quanto isso me emociona. É a maior alegria que eu poderia ter. Mesmo depois de tantos anos, é algo que ainda me toca profundamente. Acho que nunca vou me acostumar com esse tipo de retorno das pessoas.
As maiores agruras vêm de todo o resto envolvido no circuito de música independente por aqui, do quanto é difícil fazer as coisas acontecerem, mas isso é outro papo. E, sinceramente, nem importa tanto perto do que acabamos de abordar.
Essa sim é para te colocar em uma fogueira. Se pudéssemos definir Jair Naves em três músicas (músicas suas), quais músicas seriam? Não me xingue, só quero tentar mostrar as músicas que você para e pensa “essa música me define”.
JAIR NAVES – Realmente difícil, mas vamos lá. Provavelmente já vou me arrepender dessa resposta daqui a dez minutos, mas nesse exato momento minhas escolhas são:
- “Araguari II (Meus Dias de Vândalo)”, por ser uma composição que traz em si diferentes abordagens e tipos de escrita. Algumas passagens são altamente confessionais, outras quase delirantes de tão imagéticas e metafóricas. Vejo que essa música significa muito para as pessoas, ainda que tenha versos de difícil interpretação.
- “Poço de Hombridade”, do Ludovic. Na época foi uma variação muito grande dentro do estilo de letras que eu estava habituado a fazer. Abriu uma gama enorme de possibilidades na minha cabeça.
- “Converta em algo belo a minha dor”. Depressão e suas diferentes faces sempre um tema presente nas músicas, mas acho que poucas vezes de forma tão direta e sincera.
- Incluindo mais uma, “Escalas”. Fiz questão de dar uma abordagem o mais natural possível para essa. Queria que soasse como uma conversa, sem filtro algum. Até por isso todos os versos terminam com verbos no infinitivo, o que eu geralmente evito a todo custo. Creio que o resultado tenha sido justamente o que eu queria, algo capaz de criar uma conexão com o ouvinte já na primeira audição.
É isso. Melhor parar por aqui antes que eu mude de ideia ou inclua mais músicas.