No dia 26 de fevereiro foi lançado o clipe de “Madre Tierra”, gravado em Buenos Aires, na Argentina, no qual traz o rapper e educador Renan Inquérito na terra dos hermanos durante o Festival Latino Americano Del Ritmo – confira acima.
A canção traz a participação de uma das principais vozes do país: Malena D´Alessio, filha de guerreiros da ditadura argentina e fundadora do grupo Actitud Maria Marta. O clipe, dirigido pela Grito 33, mostra ainda bastidores das gravações e da parceria que uniu o rap brasileiro ao argentino, com a inserção de instrumentos típicos do tango, como o bandoneon e a guitarra criolla.
O clipe faz parte do projeto “Uma Só Voz”, que busca estreitar os laços musicais entre o Brasil e os demais ritmos da América Latina. A primeira gravação aconteceu em 2015, na cidade de Havana, em Cuba. Na ocasião, o Inquérito gravou com o La Invaxión, que tem integrantes no Caribe e no Uruguai.
Com 31 anos, Renan atualmente dá aulas na Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), em Rio Claro (SP), e percorre o país e alguns vizinhos da América Latina com o trabalho que desenvolve com o rap através do Inquérito e também com o sarau Parada Poética.
Sua poesia já foi tema de questão na prova do vestibulinho do Colégio Técnico da Unicamp (Cotuca), em Campinas (SP): “Por mais que mais da metade da América seja NEGRA, só vejo igualdade racial nas listas da zebra”. A poesia, citada no vestibulinho, integra o livro #PoucasPalavras, lançado em 2011 e caiu em uma questão referente a redação da prova.
São 16 anos de Ritmo, Amor e Poesia, fazendo música de “Corpo e Alma”, expressão que dá nome ao quarto álbum do rapper, com letras e músicas que se diferenciam no cenário nacional pela forte postura como se posiciona diante de questões sociais.
Eleito como um dos melhores álbuns lançados em 2014 pela crítica especializada, o álbum “Corpo e Alma” traz participações de Ellen Oléria (vencedora do The Voice Brasil), Arnaldo Antunes, Natiruts, Roberta Estrela D´Alva, Quinteto Brassuka, DJ KL Jay (Racionais MCs), Rael e Emicida, que além de cantar na faixa-título assina a produção executiva do disco.
Poderíamos nos estender falando sobre a vida e obra do rapper, mas a nossa conversa abaixo com o Inquérito já apresenta muito bem como pensa e no que acredita um dos artistas mais relevantes de nossa atualidade. Confira abaixo o papo.

NADA POP – Renan, por favor, fale onde você nasceu e cresceu e como o RAP entrou na sua vida? Você ainda se lembra da primeira vez que ouviu alguma música do estilo, qual era?
INQUÉRITO – Nasci no bairro Jardim Peri, na zona Norte de São Paulo e fui criado ali, na Favela do Flamengo, que foi onde eu ouvi meu primeiro rap também. Eu era adolescente e meu primeiro contato foi com o Racionais MCs, como o da maioria dos jovens de periferia na década de 1990. Eu peguei o disco, pedi emprestado, levei para casa e fiquei reescrevendo algumas letras e talvez daí eu tenha aprimorado meu gosto pela composição, pela poesia. Na sequência, fui morar em Londrina (PR), onde fui DJ de uma rádio e de um grupo, mas eu queria mesmo era escrever as letras e como não deixaram, quando eu voltei para o interior de SP, montei o Inquérito, que no começo era o nome de um grupo e que hoje se confunde com o meu nome.
NADA POP – Como surgiu o grupo Inquérito, encabeçado por você, e há quanto tempo vocês estão na estrada e quais os percalços que prejudicam e ao mesmo tempo podem fortalecer o trabalho de um artista como você?
INQUÉRITO – O Inquérito surgiu dentro do meu quarto (rs…) não tinha cadeira, era tanta gente sentada em cima da cama que quebramos ela. Isso foi em 1999 e desde então estamos na estrada. Já passamos por várias formações e eu fui o único que permaneci desde que ele foi criado. Contamos com músicos que foram somando à trajetória durante o caminho, mas que atualmente são freelas na banda. Quanto aos percalços, fazer rap já quase é um, porque é um estilo de música cercado de muito preconceito, dificuldade de entender o progresso e o crescimento, entre outras coisas, mas é justamente isso que não nos deixa desanimar da luta, de transmitir a mensagem, de cantar para o maior número de pessoas, de fazer nosso papel musical, sem parecer uma cartilha.
NADA POP – O álbum “Corpo e Alma” foi eleito como um dos melhores discos de 2014, o mesmo conta com a participação de Arnaldo Antunes, Natiruts, DJ KL Jay, Rael e Emicida, entre outros. O próprio Emicida também assina a produção executiva do trabalho. Você pode contar como foi a produção desse álbum, onde e quando foi gravado e se o reconhecimento obtido com o álbum conseguiu dar mais força para seus outros projetos sociais e como educador?
INQUÉRITO – A ideia deste álbum surgiu durante uma viagem de carro para o Rio de Janeiro com o Emicida. Eu comentei que tinha vontade de fazer o disco e ele foi o principal entusiasta. Nessa viagem, nós fomos à praia e ele me disse para levar o caderno para a orla, pois iríamos planejar o disco, trabalhar. Ali, fizemos todo o cronograma, definimos quem seriam as participações, os produtores, e começamos a trabalhar nisso. Demorou cerca de 1 ano para ficar pronto. Ele foi gravado em SP e sem dúvida, o reconhecimento obtido com o disco nos deu um gás para nos profissionalizarmos ainda mais, para investirmos em melhorias dentro do grupo, a pensar novos projetos como visitas a países da América Latina, gravando com músicos locais. Neste ano já fomos à Cuba, onde gravamos com o La Invaxión e fizemos um clipe, já fomos à Argentina, entre outras coisas.

NADA POP – Por favor, fale um pouco mais sobre os projetos “Parada Poética” e “Um Brinde”, como funciona, quem pode participar e como é possível ter mais informações a respeito.
INQUÉRITO – A Parada Poética é um sarau sem regras, nem convite, onde a entrada é franca e as ideias também. Ele acontece mensalmente, sempre na segunda segunda-feira, na Estação Ferroviária de Nova Odessa (SP), que é a cidade em que eu moro. O Sarau foi idealizado com meu amigo e fotógrafo Marcio Salata, que é também fez as fotos do livro #PoucasPalavras. O sarau está indo para o terceiro ano e estamos preparando também um documentário com essa história, com os convidados que fizeram parte (já recebemos Emicida, Marcelino Freire, G.O.G., Sérgio Vaz, Ni Brisant, Estrela Ruiz Leminski, RAPadura, Alessandro Buzo, Emerson Alcalde, Roberta Estrela D´Alva, Passirinheiros, Poetas Ambulantes, entre outros). Além das edições mensais, nós também percorremos escolas, só em 2015 passamos em 32 na região de Campinas, além de outras esporádicas que estivemos, Fundações CASA, universidades, presídios, bibliotecas, etc. A ideia é espalhar a poesia. Nós também distribuímos o #PinoPoético, que é um objeto com poesia dentro.
Sobre o “Um Brinde”, ele foi idealizado em 2011, com o lançamento de um clipe de mesmo nome, parte do álbum Mudança. Com o clipe, nós enviamos o DVD para 200 pontos diferentes do Brasil e foi feita uma ação em massa de exibição nestes locais, durante a semana de combate ao alcoolismo, que coincidiu com o Carnaval naquele ano. Além destes pontos, nós enviamos também para 5 no exterior (Cuba, Guiné Bissau, Inglaterra, Portugal e EUA), que também exibiram o material. A canção versa sobre a indústria do álcool, que vai desde o corte da cana, até os combustíveis e fala também sobre a bebida. Com isso, fizemos parte da CPI do alcoolismo na Câmara dos Deputados em Brasília e um show na Assembleia Legislativa de SP. O diretor do clipe é o Vras77.

NADA POP – E sobre seu trabalho com a Fundação Casa, quando começou, como é feito e quais os resultados que você avalia como positivo e qual a sua percepção (falhas, problemas e até pontos positivos) sobre a reeducação do menor infrator no Brasil?
INQUÉRITO – O convite veio a partir do “Um brinde”, em 2011, e nunca mais paramos. Eu cheguei uma vez lá para fazer uma oficina de rap. Aí o diretor da unidade disse que eu não podia fazer uma oficina daquela, porque o rap faz apologia ao crime, à violência, essas coisas. Ele deixou fazer oficina com os meninos se fosse de poesia. Daí pensei: “Vou chegar lá, fazer poesia e, quando ele for embora, montar uma oficina de rap”. Mas ele não foi embora. Então, fiquei sem saber o que fazer, tentando me lembrar de alguma poesia, alguma coisa, mas não tinha nada na cabeça. Falei para os moleques: “Vamos fazer uma cena de poesia”. Eles ficaram me olhando e falaram: “Ah, poesia é coisa de veado. Você tá tirando!”. Respondi que se ninguém gostasse eu iria sair fora e comecei a declamar: “O que é o que é, clara e salgada, cabe no olho, pesa uma tonelada, tem sabor de mar…”, e eles continuaram declamando. Eu interrompi e disse: “Ué, vocês não disseram que não gostavam de poesia?”. E eles responderam: “Mas isso aí é Racionais”. “E Racionais é o que?”, rebati. “Ah, Racionais é rap”, devolveram eles. E daí eu terminei: “E rap é o que?”. Eles ficaram em silêncio e eu continuei: “Rap não é ritmo, amor e poesia? Se eu colocar um ritmo em uma poesia não pode virar um rap? Oh, vou fazer outro rap pra vocês: [começa a cantar] ‘Vocês que atravancam meu caminho, ah, passarão, eu passarinho’”. Os caras ficaram olhando e falaram: “Pô, legal esse rap aí. Mas a gente não conhece”. E eu respondi: “Isso é Mário Quintana”. “Ah, tô ligado quem é esse Quintana, é o Mc Quintana, né?”, eles disseram. E assim eu apresentei aos meninos o Mário Quintana, que sequer conheceu o rap, mas que podia ser um MC. Se você achar um caderno na rua com versos do Racionais e não conhecer Racionais, vai pensar que aquilo é poesia. O que torna aquilo rap é a voz do Mano Brown. Se o Brown cantar uma poesia do Carlos Drummond de Andrade, vira um rap feito no Capão Redondo e ninguém vai saber sequer quem é Drummond.
Por isso, sou suspeito para falar do hip-hop como ferramenta educacional. Sou professor e hoje atuo muito mais fora da sala de aula do que dentro. O que me permite atuar fora da sala de aula não é meu diploma de Geografia da Unicamp, mas a vivência de 15 anos de hip-hop que tenho perambulando por todas as periferias do Brasil. O Inquérito tem uma entrada muito grande nas periferias, nas penitenciárias, na Fundação Casa, em presídios de regime semiaberto, regime fechado, em presídio feminino. Fizemos coisas em todos esses locais. O hip-hop permite essa ponte. E é única música que ainda tem um viés de conscientização e de educação. Claro que não dá para colocar nas costas de um MC o peso de um professor, de uma escola, mas o hip-hop conecta muito mais. É muito louco!
Sobre as dificuldades, o que acontece na Fundação Casa é que tem uma parte dos meninos que é cooptada pelo crime organizado mesmo, que está seduzida pelo crime, que já tem mentalidade de criminoso. Tem uns moleques monstrão lá, que está internado pela terceira vez. Mas a maioria é de moleque primário, mano. Moleque que caiu lá de bobeira, que roubou um posto de gasolina, levou droga de um lugar pro outro…
NADA POP – A redução da maioridade penal favorece quem?
INQUÉRITO – É inconcebível pra gente um moleque estar na Fundação Casa em um modelo de sociedade como o nosso, onde supostamente existe escola para todos, oportunidade para todos. É uma teoria muito bonita, mas não é a realidade. Só funciona na novela. Na prática, esses meninos não estão frequentando a escola ou, pior, a escola que eles frequentam não está dando conta. O que é engraçado é que o contrário dessa situação não choca: um menino que estudou no Colégio Marista a vida toda, que fez intercâmbio pelo Rotary, que na formatura do terceiro colegial foi para Porto Seguro e que depois, quando entrou na faculdade, ganhou um carro “popular” do pai, quando esse moleque entra em uma atividade criminosa, não choca a sociedade. É estranho, porque esse é o caso verdadeiramente chocante. Um menino desses teve toda uma estrutura, um caminho, um berço, e mesmo assim se envolveu no crime. Pior ainda é quando um juiz, que tem um puta discernimento, uma puta condição social, quando se envolve em um crime não choca tanto do que quando acontece um desses casos com menores.
NADA POP – Dentro do seu trabalho com a Fundação Casa, alguma história que você poderia contar que tenha ficado na sua memória (e na alma) de forma mais profunda?
INQUÉRITO – Tem um sim, da primeira vez que eu cheguei lá logo fui avisado que existia um menino “problemático” que exercia forte liderança sob os demais, disseram que se ele não aprovasse a atividade faria com que os outros não participassem, porém logo de cara a atividade caiu na simpatia de todos e ao longo das oficinas alguns foram se destacando e tomando a linha de frente. Estávamos em maio e eles queriam fazer algo para as mães no dia da visita, mas eu não podia estar lá naquela semana, então escolhi um deles, que havia demonstrado bastante facilidade com a música, e esse menino ensaiou todos e conduziu a apresentação do Dia das Mães, cheguei lá na outra semana e soube que foi lindo, eles estavam todos orgulhosos, e eu também fiquei. Logo descobri que o tal garoto problemático era o meu “maestro”.
NADA POP – Sobre as diversas ocupações de escolas e manifestações de estudantes contra a reorganização escolar do governo Alckmin, apesar do apoio de vários movimentos sociais e artistas, a manifestação dos jovens não recebeu o mesmo incentivo de grande parte da elite. Como você observa essa indignação seletiva e o próprio movimento dos estudantes contra a reorganização?
INQUÉRITO – A elite não vai apoiar mesmo. Ela não quer o moleque de periferia competindo a vaga com o filho dela na universidade pública. Saca o filme “Que Horas ela volta?”. É isso. A elite não quer perder a vaga na USP, na Unicamp para um filho da periferia. E se posicionar contra os estudantes é mais fácil do que se posicionar contra o governador que eles elegeram. É a elite que pensa em meritocracia, que não quer o pobre educado, mas encarcerado. É quem se manifesta a favor da redução da maioridade penal. O que nos resta é lutar. Como Inquérito, estivemos escolas da nossa região, trocando uma ideia com a molecada. E vamos sempre que for preciso. Eu faço jus à minha própria frase “Só vou desistir, abortar minha missão, quando a educação aqui virar ostentação”.

NADA POP – Os professores em São Paulo ficaram 3 meses em greve no ano passado e encerraram a manifestação sem obter o reajuste salarial. A mesma greve foi muito mal amparada pela mídia de grande massa que não se preocupou o suficiente com as questões salariais e as dificuldades da profissão. Como educador, qual tem sido o respeito do Estado para com os professores e quais as maiores dificuldades em ensinar atualmente?
INQUÉRITO – O respeito é o da cota mínima, o suportável, que na verdade ninguém mais aguenta porque já é insuportável. As dificuldades são físicas, psicológicas, estruturais, quando ensinar vira ato de coragem você já vê qual a prioridade do Estado para com o ensino.
NADA POP – O rap tem conseguido cada vez mais espaço na mídia e reconhecimento ainda maior pelo público. A sua poesia está na periferia e, ao mesmo tempo, é ouvida por pessoas que nunca sentiram na pele qualquer discriminação. Com diferentes públicos, qual é o impacto que você geralmente busca causar nas pessoas com as suas canções?
INQUÉRITO – A gente não faz uma música ou poesia pensando nisso, fazemos porque estamos sentindo, porque nos incomoda, dói, ou encanta. Não existe um publico pré-estabelecido, mas quanto mais gente puder ouvir, conhecer, melhor vai ser. Se você se arrepia quando escuta, se você se identifica e tem vontade de mostrar pra todo mundo que conhece, então você também é um dos nossos, pode até pensar diferente, pode até achar que é diferente, mas algumas sensações são involuntárias, não tem como correr, é como diria Jorge Aragão “Não dá pra fugir dessa coisa de pele, sentida por nós, desatando os nós…”
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