
Não gostava da Malvina, minha percepção sobre o grupo era muito individual e cheia de “maneirismos”. Parecia ser um som de outra realidade, quase que artificial demais para quem sempre esteve do lado punk da vida.
Mas dei o braço a torcer com Hybrid War. São tantas faixas representando o hardcore e com letras tão bem escritas que me pensei falando: “Onde que eu estava com a cabeça?”. Mas felizmente nunca é tarde para recuperar o tempo perdido.
A banda possui elementos do próprio “hardcore”. É um hardcore-punk, thrash metal sofisticado, mas de um modo positivo. Seria uma sofisticação musical entre o peso e a mensagem, como se fossem – em uma tentativa tosca comparativa de minha parte – um Rush do hardcore. É, sim…
Hybrid War foi lançado no final de abril e conta com o apoio de 11 selos de países diferentes, é um alcance que por si só deveria ser melhor estudado. São eles Electric Funeral (Brasil), Ghost Factory (Itália), Geenger (Croácia), Morning Wood (Holanda), 5FeetUnder (Dinamarca), Bomber Music (Inglaterra), Mevzu (Turquia), Money Fire (EUA), Punk & Disorderly (Canadá), Audioslam (Chile), Mud Cake (Alemanha) e Razor (Argentina).
A mixagem foi feita por Jason Livermore e acompanhada pela banda no Blasting Room Studios, no Colorado (EUA), onde artistas como Rise Against, NOFX e Descendents costumam gravar. Trabalho profissional, né? Dá até uma invejinha de leve, mas pensa, o que seria de tudo isso sem o som? Definitivamente nada.
Mas afinal, o que significa esse Guerra Híbrida que dá título ao álbum?
De acordo com a banda, “Guerra Híbrida” é um tipo de guerra não-convencional em que os Estados Unidos, agente principal, identifica conflitos e explora as vulnerabilidades em países-alvo para alcançar objetivos estratégicos. Um dos métodos é a manipulação de movimentos sociais pelos meios de comunicação com o intuito de enfraquecer ou depor governos antipáticos à sua agenda.
A banda se baseia muito na própria história recente do país e na submissão brasileira aos EUA. “As músicas abordam diferentes ângulos o contexto da ‘Guerra Híbrida’ no Brasil e seus diversos desdobramentos até as consequências políticas e sociais da economia de mercado, no âmago da crise que enfrentamos”, explica a banda.
Assuntos abordados no Hybrid War:
– Conexão entre as políticas neoliberais, implementadas no governo Temer e ampliadas com Bolsonaro, e os interesses imperialistas.
– A política de remoção no Rio de Janeiro paras as Olimpíadas de 2016, que desabrigou um grande número de famílias da região central para dar espaço às obras, que atendiam não só os pré-requisitos do Comitê Olímpico Internacional, mas também do mercado imobiliário em um fenômeno classificado por Jules Boykoff, cientista político norte-americano, como Capitalismo de Celebração;
– O uso do Capitalismo de Desastre, teorizado pela canadense Naomi Klein – que recentemente atribuiu o conceito ao governo Trump -, para explicar a lógica por trás das tragédias de Mariana e Brumadinho, e que, de modo geral, se baseia na obtenção de lucro em meio à calamidade.
– O ódio de classe, que permeia grande parte das faixas ao longo do disco; e a perspectiva de sobrevivência diante da exploração de todos os tipos de recursos, naturais e humanos em nome de uma “riqueza” que não cabe nas limitações da Terra.
Ou seja, um disco cheio de conteúdo que não deveria passar batido por nenhum fã de hardcore. A banda, com origem em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, é formada por Vinicius Berbert (vocal e baixo), Bernardo Berbert (vocal e guitarra) e Renato Avellar (bateria).
Conversamos com os irmãos Berbert que, convenhamos, mandaram a letra no papo. Confira abaixo!
Entrevista com a banda Malvina
NADA POP – A banda cita que o álbum “Hybrid War” é um hardcore punk progressivo. O que de fato representa essa definição para a banda e como foi o processo de composição para esse álbum?
MALVINA – Essa definição responde à estrutura anárquica das músicas, com origem no punk-hardcore que naturalmente assumem um caráter progressivo.
Foi um longo processo de composição e experimentamos muito, desde a seleção das faixas pro disco, a sequência e a relação com a temática.
NADA POP – O atual contexto político e econômico do Brasil é um dos temas do novo álbum. Nesse caminho, como vocês enxergam a importância da arte como manifestação sociopolítica e de transformação?
MALVINA – Quanto mais cedo tivermos uma maioria consciente de que esse governo veio contra o povo e contra os interesses do país, mais cedo poderemos mudar o cenário mórbido que vivemos. É preciso agir contra a realidade mágica produzida pela equipe de Bolsonaro, combater com informação, e a arte tem um poder que vai além da articulação objetiva, a capacidade de produzir catarses conscientizadoras através do subjetivo, das emoções. Seu potencial efeito social pode ser medido pelo grau de censura à qual foi submetida nos períodos de maior tirania. Temos o exemplo da ditadura no Brasil, o perigo dos versos e palcos, o papel histórico de Victor Jara na ditadura chilena, a lista negra de McCarthy nos EUA entre tantos outros exemplos. O momento exige mobilização nas ruas e todo tipo de manifestação artística.
NADA POP – Existe uma crítica ao capitalismo e no seu modelo autodestrutivo dentro do álbum. Vocês enxergam algum caminho econômico diferente para o mundo nos próximos anos?
MALVINA – Vivemos a fase mais destrutiva do capitalismo, com o domínio do capitalismo financeiro. Um primeiro grande desafio é retomar a participação do Estado na economia.
Diante do capitalismo de cassino de que somos vítimas, do discurso neoliberal pelo Estado mínimo, da alt-right que avança pelo mundo, um programa que proveja salário indireto através de acesso à bens coletivos, saúde e educação pública de qualidade, imposto sobre grandes fortunas já é algo que soa radical.
É necessário criar um mecanismo de regulação global diante do sistema de capitalismo financeiro. Acionistas mandam no mundo hoje, tem poder de decisão nas multinacionais que por sua vez tem poder político por toda parte no globo.
As decisões não consideram os aspectos socioambientais, mas os dividendos.
NADA POP – O meio ambiente e a exploração de recursos também são temas dentro do álbum. Países como os EUA negam o aquecimento global enquanto as temperaturas, principalmente no Brasil, aumentam a cada ano. Na opinião de vocês, qual o verdadeiro papel de cada um para proteger o meio ambiente e como vocês acreditam que o governo Bolsonaro enfrentará esse problema?
MALVINA – Negar o aquecimento global, a liquidação da biodiversidade, o desmatamento e a poluição de rios e oceanos foi a saída fundamentalista que o governo Trump achou pra manter o atual sistema de exploração e garantir os lucros dos acionistas para os quais o governo responde.
No Brasil, temos um projeto antiambiental encampado pelo governo, que age indiscriminadamente em nome das grandes empresas.
A atuação do atual ministro, Ricardo Salles, a criação do Núcleo de Conciliação Ambiental por Bolsonaro, uma medida contra a suposta “indústria de multas” vai na contramão da realidade e agrava nossa perspectiva sombria. Estimativas apontam pro desaparecimento quase completo da Amazônia em 40 anos, no atual ritmo de exploração.
Por um lado, temos a tarefa urgente de nos mobilizarmos pra destituir o governo, e esse 15 de maio mostrou a força do povo.
Entre algumas das medidas efetivas em favor do meio ambiente são a adoção do veganismo, vegetarianismo ou a redução do consumo de carnes e derivados dados os números que a indústria representa – mais de 65% do desmatamento da Amazônia e por 15% do total das emissões de gases de efeito estufa. Usem suas bikes!
NADA POP – Políticas neoliberais, liberação das armas e redução nos investimentos na Cultura e Educação no Brasil. Quais os caminhos que vocês imaginam que o país esteja percorrendo e quais riscos estamos correndo?
MALVINA – Vivemos no presente momento a pior fase do Brasil em toda sua história, Bolsonaro é uma aberração.
As políticas do atual governo visam favorecer os interesses do capital estrangeiro, devolvendo o país ao quintal da América.
Os cortes na educação e os ataques à cultura são estratégias de sobrevivência de um governo que tem como combustível a ignorância. Mobilizações como as do dia 15 de ,aio precisam ser frequentes e contínuas, só assim é possível frear ou desacelerar o processo de destruição em curso.
NADA POP – A banda não possui o receio de retaliação por parte de um público polarizado que acredita ser de direito atacar qualquer pessoa que pensa de forma diferente dos atuais governantes do país? Já enfrentaram problemas com isso?
MALVINA – Em relação às possíveis retaliações, isso não nos preocupa. A extrema-direita tem como estratégia de dominação ameaças de morte e agressões físicas, é dessa forma que pretendem calar os setores da sociedade dispostos a denunciar o caráter antinacional e criminoso de suas políticas. Toda vez que essa tática é bem-sucedida as ameaças tendem a se intensificar, ao mesmo tempo, a capitulação serve como exemplo a outros grupos e pessoas que estão em situação semelhante, o que, ao invés de encorajar a resistência, estimula a resignação.
A melhor forma de combater esse tipo de ataque é se manter firme e unido às forças de resistência.
NADA POP – Recentemente vocês foram citados pela Statues on Fire como uma banda que atua em prol dos direitos humanos. Quais bandas e artistas vocês também enxergam esse papel e por que ainda devemos acreditar na mudança enquanto tudo parece virar para um país conservador e moralista?
MALVINA – Antes de tudo, é uma honra pra gente ser citado pelo Statues on Fire, temos muita admiração pela banda e a postura que adotaram nesse momento.
Dentre os artistas que na nossa ótica têm desempenhado um papel importante estão Dead Fish, Questions, Ratos de Porão, Nervosa, Paura, Violator, Fataar, Surra, entre outros.
Apesar do cenário sombrio, acreditamos na capacidade de aprendizado e autocrítica da sociedade.
Temos uma coleção de interrupções do progresso e derrotas da democracia na nossa história. Estamos agora no nosso ponto mais crítico, nunca o retrocesso foi tão escancarado, e justamente por isso é que estamos na melhor hora pra abrir os olhos do povo.
NADA POP – O álbum está sendo lançado em 11 países, por meio de alguns selos. Como avaliam essa divulgação com apoio dos selos, em tempos de internet qual a importância de um selo para bandas como vocês?
MALVINA – Tem sido muito gratificante pra gente receber feedbacks sobre o Hybrid War de um público totalmente novo, de vários países de culturas diferentes, graças à essa distribuição. Selos são vitais pra bandas independentes, tornam viáveis projetos que de outra forma seriam impossíveis.
Esse disco à princípio seria lançado por uma gravadora de grande porte dos EUA, que por uma série de fatores que incluem processos, veio à falência um pouco antes do lançamento.
Diante desse imprevisto, foram selos independentes e a filosofia “faça você mesmo” que permitiram manter o lançamento em um âmbito global.

NADA POP – Aproveitando o gancho, o Dead Kennedys cancelou recentemente os shows que faria no Brasil por conta de um cartaz crítico ao atual governo no País. O questionamento é se vocês acompanharam o ocorrido, o que pensam sobre a banda (DK) e como vocês se colocam diante dos problemas políticos e sociais de um país vizinho (vizinho ou não) muitas vezes vivenciados por vocês durante as turnês?
MALVINA – A repercussão foi gigantesca, fatos como esse demonstram o poder da arte.
A ilustração do Cristiano Suarez trouxe a crítica sarcástica ao neoliberalismo de Reagan pro atual contexto político brasileiro com perfeição. Nada poderia ser mais atual que o ódio mortal aos pobres, e a menção à Rambozo foi simplesmente genial. Era de se esperar reação por parte de bolsonaristas pelo caráter provocativo do cartaz, e quanto à postura da banda, só demonstrou pra quem ainda tinha alguma dúvida que o Dead Kennedys acabou com a saída do Jello em 86.
O trabalho de distribuição por selos diversos que experimentamos agora, o estabelecimento de laços afetivos em outros países permite uma compreensão maior de outros contextos políticos, nos aproxima de diferentes culturas e favorece uma visão geopolítica mais ampla. No momento acompanhamos a crise do neoliberalismo na Argentina, onde tocamos em 2014, e esperamos do resultado das eleições desse ano um projeto popular capaz de reconstruir o país da devastação causada pelo capitalismo financeiro.
NADA POP – Contem sobre os planos da banda para o futuro, turnê, shows e videoclipes e agradecemos pela papo.
MALVINA – Estaremos até dezembro tocando pelo Brasil, tem muita cidade que a gente quer tocar faz tempo e vamos aproveitar os próximos meses pra conhecer melhor. No início de dezembro começa a tour europeia, os primeiros shows são na Itália, passamos pela Áustria, Suíça, Alemanha, República Tcheca, França, Holanda, Bélgica, Dinamarca e Espanha.
Alguns clipes vão sair em breve, agradecemos de verdade a oportunidade, grande abraço!
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