Se o descaso vivenciado por todos os brasileiros nos últimos dois anos tivesse uma trilha sonora, provavelmente uma das bandas escolhidas seria a Manger Cadavre? Com dez anos de história completados no mês de novembro, a banda lançou recentemente seu segundo álbum cheio intitulado “Decomposição”.
As 11 faixas que integram esse trabalho trazem temas importantes e que podem ser facilmente interpretados como um paralelo atual da nossa sociedade, reiterando o posicionamento ideológico da banda que força uma reflexão sobre as amarras invisíveis que controlam as vidas de todos nós. Ou seja, a banda se mantém coerente com a sua própria raiva e demonstra que não irá apaziguar seu ódio as desigualdades, mantendo a “crença na retaliação”.
Mesmo que o álbum não seja temático, como a própria banda afirma, a morte acaba sendo um assunto presente em todo o disco. Na faixa “Epílogo”, por exemplo, traz nitidamente o fim da vida como eixo da música e a degradação da consciência perto da morte já na primeira faixa do álbum. A morte é algo ainda presente em outras faixas, presente inclusive no encerramento do disco, na música “Cemitério do Mundo”.
Porém, e isso que torna a Manger Cadavre? uma banda diferente das demais, é que os assuntos fazem referência política, mas ao mesmo tempo podem ser transportados para outras áreas da vida, desde religião ao modelo econômico, mas passando por relações pessoais e família.
“Mas quando a esperança desaba, a ordem da desordem do mundo vence e o silêncio grita tão alto que o vazio transborda em pranto”, canta Nata Nachthexe na faixa “Vida, Tempo e Morte”. Talvez uma das músicas de maior impacto no disco e que traz um questionamento ácido: como trazer vida às coisas mortas?
Desse álbum surgiu inicialmente o clipe da faixa “Apatia” e, posteriormente, o lyric vídeo da música “Demônios do Terceiro Mundo”, que traz participação da Fernanda Lira (Cripta) e Caio Augusttus (Desalmado). Ambos os vídeos estão disponíveis no YouTube, no canal do selo Xaninho Discos.
O álbum “Decomposição” já está disponível nas plataformas de streaming, mas recomendo que ouça no Bandcamp da banda, sendo possível conferir todas as letras do disco, além de todo a biografia sonora do grupo, que além dos álbuns cheios conta com EPs, singles e até mesmo discos em parceria com outras bandas.
Por fim, vale informar que esse trabalho foi gravado no estúdio Family Mob, em São Paulo, com produção e mixagem de Otavio Rossato, a masterização é assinada por David Menezes e a arte de capa por Wendell Araújo
Além Xaninho Discos, o lançamento do álbum também conta com o apoio dos selos Poeira Maldita Recs, Helena Discos, Brado Distro, Two Beers or Not Two Beers Records e Tiranossaura Recs. O distribuidor digital de “Decomposição” e o selo estrangeiro Blood Blast.
Conversamos com a banda em uma entrevista exclusiva abaixo.
Após assistir o clipe do single “Apatia” é possível fazer um paralelo com o Brasil pandêmico, no sentido de parecer que estamos em um país devastado? Nesse sentido, é possível ainda acreditar em saídas?
Manger Cadavre? – Acreditamos que com organização da classe trabalhadora e luta, sim, é possível encontrar saídas desse sistema que esmaga.
É inegável que a pandemia está refletida no álbum, mas metade dele é mais pessoal, abstrato, faz uma reflexão sobre vida e morte de relações, de existência e a outra metade é mais politizada. A pandemia acirrou nossas questões de saúde mental individualmente que já existia anteriormente a ela por diversas circunstâncias.
A única coisa que nós conseguimos fazer foi a catarse de tudo de ruim, na música. Ensaiar era como estar vivo novamente, em uma época que a gente só existia, mas foi engolido.
Sabe-se que as redes sociais também são responsáveis por impactar negativamente na saúde mental, mas como observam essa suposta necessidade de interação do artista com esse meio virtual?
Manger Cadavre? – Dividimos algumas tarefas, o Bruno é responsável por responder as pessoas, Marcelo cuida do merch, Nata publica os conteúdos. Paulinho cuida das burocracias fora da banda. Usamos o Telegram para organizar a banda e tem sido bem positivo. O uso da internet não se resume a redes sociais. Mas dessas a que mais utilizamos individualmente é o YouTube para ver conteúdos legais.
As redes podem ser muito proveitosas, mas é preciso diminuir o volume de publicações que fomentam ódio, que buscam a competição e críticas maldosas. Isso já existia antes delas, agora só tem onde se registrar. O importante é não dar ouvidos a meia dúzia que não faz nada para somar com ninguém e valorizar as tantas pessoas massa e que somam com aquilo que você é ou faz.
É por elas e por essa troca que se vale a pena ainda estar presente nas redes sociais!
A arte é um dos meios de representação da sociedade, atuando em paralelo da história de um povo, um país. Como a banda trabalha seus temas e qual a percepção de vocês sobre outras bandas e artistas que estão, assim como vocês, participando dessa construção da história? Veem isso da mesma forma também?
Manger Cadavre? – Nossos lançamentos sempre partiram da vivência e naquilo que acreditamos essa é a primeira vez que nos permitimos colocar temas mais abstratos em letras. Exceto no AntiAutoAjuda que foi um álbum temático, os demais foram naturais. Não tinham um intuito específico de retratar a atualidade, mas sim o contexto da luta de classes que perdura. Sobre outros artistas, acho que cada um tem que ter a liberdade de poder produzir aquilo que sente, que escolhe. A arte é um dos poucos locais que se pode ser aquilo que realmente se é, então a nossa opinião é que se deve ser verdadeiro sempre.
Como vocês estão se preparando para voltar aos palcos e qual a perspectiva, na opinião de vocês, em relação ao futuro dos shows ao vivo pós-pandemia?
Manger Cadavre? – Estamos ensaiando sempre o novo set e já compondo mais músicas. Como queremos ficar o máximo possível na estrada, estamos adiantando os processos futuros, para que possamos ter mais material para 2023.
O consumo de música de vocês sofreu alguma mudança nesse período da pandemia? Em quais aspectos e como acreditam que o público também possa ter mudado? Ou não, também.
Manger Cadavre? – A gente sempre ouviu muita música, da hora que acorda, trabalhando, caminhando e até na hora de dormir. Então continuou igual.
Por fim, como tem sido a contribuição dos novos membros da banda junto às composições e quais os próximos planos da Manger?
Manger Cadavre? – Cada um trouxe suas influências, mas ouviram as 300 bandas que indicamos de referência de som. Isso foi muito bom! Temos um “manger” mais denso, baixamos a afinação pra “si” e as músicas estão bem trabalhadas. Os planos no momento são apenas de lançar o álbum e tocar o máximo possível ano que vem!